Revista
Latinoamericana de Psicoterapia Existencial. UN ENFOQUE COMPRENSIVO DEL
SER. Año 12 - Nº 24 –
Abril 2022.
Sección Casos Clínicos
Da vivência anancástica à depressão: análise
compreensiva e antropológico-existencial da história de Ísis.
From anancastic
experience to depression: a comprehensive and anthropological-existential analysis
of the story of Isis.
Beatriz Grangê y Wânier Ribeiro
Belo Horizonte, Brasil
Faculdade Arnaldo Janssen; consultório de Psicologia.
RESUMEN
Este trabalho propõe uma análise compreensiva
e antropológico-existencial de um caso clínico de uma mulher de 58 anos, que
vivencia um modo anancástico, relativo especialmente
ao cuidado com o outro; luto não elaborado de filha única, com paralisia cerebral;
e depressão neurótica, intensificada por episódio reativo, relativo à morte da
filha. Decorre, daí sua busca pela psicoterapia. Foi atendida no semestre
1/2019, em clínica-escola, do curso de Psicologia, da Faculdade Arnaldo
Janssen, Belo Horizonte, Brasil. O estudo foi retomado pelas autoras, dois anos
após, visando aprofundar a compreensão dos vividos, em sua totalidade, o desenvolvimento histórico-temporal dos
modos sintomáticos apresentados e as possibilidades de autocuidado. A
perspectiva adotada sugere que o ser se constitua em termos de mundo,
verificando-se a importância da atenção clínica na compreensão dos nexos de
sentidos histórico-temporais, para o entendimento dos desdobramentos do
adoecer, bem como das possibilidades da retomada de si.
Palabras clave
Vivência anancástica, depressão, análise
compreensiva-existencial.
Abstract
This
work proposes a comprehensive and anthropological-existential analysis of a
clinical case of a 58-year-old woman, who experiences an anancastic
way, especially related to caring for the other; unprepared mourning of an only
child with cerebral palsy; and neurotic depression, intensified by a reactive
episode, related to the daughter's death. Hence, his search
for psychotherapy. She was attended in the semester 1/2019, in a
clinic-school, of the Psychology course, at Faculdade
Arnaldo Janssen, Belo Horizonte, Brazil. The study
was resumed by the authors two years later, aiming to deepen the understanding
of the experiences, in its entirety, the historical-temporal development of the
presented symptomatic modes and the possibilities of self-care. The perspective
adopted suggests that the being is constituted in terms of the world, verifying
the importance of clinical care in understanding the nexus of
historical-temporal meanings, to understand the consequences of falling ill, as
well as the possibilities of recovering oneself.
Keywords
Anankastic
experience, depression, comprehensive-existential analysis.
Presentación
Este estudo de caso clínico, ora arquivado, e, posteriormente retomado,
foi realizado em estágio supervisionado, do último período do curso de
Psicologia, da Faculdade Arnaldo Janssen, situada
em Belo Horizonte, Minas Gerais, na República Federativa do Brasil, no primeiro
semestre de 2019. Embora o estudo continue sendo acompanhado na clínica-escola,
foi retomado em 2021, pelas autoras, devido ao interesse de aprofundamento da
compreensão da história de Ísis[1] e
produção científica. Propôs-se uma
análise compreensiva e antropológico-existencial da história vivencial de Ísis, à época do atendimento com 58 anos, que demonstrava vivenciar
neurose obsessivo-compulsiva e depressiva, tais modos sendo agravados após à morte de sua
filha, de 13 anos, falecida há 6 anos. Filha esta que nasceu com paralisia
cerebral.
A análise do caso por via da abordagem compreensiva e
antropológico-existencial sugere, como enfatiza Dilthey
(2008), não subordinar os fenômenos da
vida psíquica a um vínculo causal, mediante um número limitado de elementos
determinados, mas sim apurar a conexão de sentidos histórico-temporais, dada de
um modo originário e constante na vivência, entendendo-se, assim, que a vida
está presente em toda a parte como nexo. Desse modo, diz-se que tal
hermenêutica reflete a estrutura da própria vida, o individual se compreende
pelo todo, e o todo pelo individual, enquanto apreensão de sentidos. Dilthey (2008), referendando-se em Schleiermacher,
anuncia que o compreendido não é apenas a literalidade das palavras em seu sentido
objetivo, mas, também, e especialmente, a individualidade de quem fala, como autor(a), sendo fundamental retroceder à gênese das ideias
para que paralelamente à interpretação gramatical aconteça a interpretação
psicológica.
Isso significa dizer que os homens vivem condições que extrapolam as
leis gerais, seja da psiquê humana ou de grupos
sociais, posto que são inteligíveis, complexos,
mutáveis e dotados de individualidade. A vida humana se faz, assim, em
complexidade e dinâmica, constituindo-se para além de fenômenos tangíveis, uma
vez que todas as experiências humanas são fundadas por seus contextos sócio-históricos e culturais e atravessados por demandas
(de índole psicossocial e ontológica), interesses, necessidades (de natureza
biológica), valores, preferências, julgamentos, percepções. O self,
nesta perspectiva, não é um dado imediato da consciência, mas sim, a produção
contínua e fluída dos nexos-vida da consciência, realizados temporal e
espacialmente. Sua estrutura participa da realidade do mundo espacial, mas,
incontestavelmente, a percepção interior, orientada temporalmente, define a sua
realidade. Desse modo, a compreensão se dá apenas no empreendimento do diálogo
inter-humano, por meio de uma mediação histórico-temporal distinta, a qual busca-se os traços do que foi e é a vida.
Na perspectiva de Dilthey (2008), tal
compreensão se coloca a favor de uma psicologia descritivo-analítica, tendo ela
a capacidade de retratar o homem na sua relação com o mundo, ou seja, com a sua
vida concreta, particular e articulada ao contexto histórico. Decorre, daí, uma
Psicologia da vida! O psíquico ou a vida anímica é dada
à consciência imediata pelas condições históricas de possibilidade, determinadas
pela unidade temporal – passado, presente e futuro. Neste sentido, acredita-se
que “a vida anímica constitui um complexo de disposições solidárias, que
evoluem através do tempo e na qual o passado persiste e influi sobre toda experiência
nova” (DILTHEY, 1944, p. 26-27). A consciência com seu caráter volúvel anuncia
que as vivências são estruturas plásticas, fundidas nos homens, ao longo de sua
trajetória histórico-temporal, e que na relação entre o nome e o nomeado sempre
se verifica a possibilidade de eles colherem da experiência vivida os
significados atribuídos às suas histórias.
Para Dilthey, as vivências se dão numa
realidade direta, sendo a experiência a conexão entre o espírito e o tempo,
portanto, realidade histórica estruturada pela compreensão da vida. Desse modo,
espírito e mundo encontram-se articulados na vivência expressada, que se põe
como material privilegiado de descrição psicológica e de hermenêutica das
manifestações da vida.
Conceber, psicologicamente, o fio histórico-temporal da vida de uma
pessoa, por meio de uma perspectiva compreensiva e antropológico-existencial,
implica, então, antes de tudo percorrer a sua biografia e seus modos de sentir
o mundo, buscando acompanhar o fluxo de seus horizontes
existenciais, que, como história que é, se situa em
liames. Liames estes que, parafraseando Guimarães Rosa, afrouxam e apertam, esquentam
e esfriam, sossegam e depois desinquietam, uma vez que o correr da vida
embrulha tudo e requer coragem.
Por este viés e recorrendo-se a Kierkegaard
(2013, p.66), existir é angustiar-se e angústia “é a vertigem da liberdade, que
surge quando o espírito quer estabelecer a síntese, e a liberdade olha para
baixo, para sua própria possibilidade, e, então, agarra a finitude para nela
firmar-se”. Como salienta Tillich (1976), respaldando-se
em Kierkegaard, para firmar-se é necessário
ao espírito a relação da angústia como autoafirmação e coragem, para que ela
não se torne patológica. Se assim acontece a angústia não é afastada, posto que
ela seja existencial, mas a coragem incorpora a angústia de “não-ser”
dentro de si, resistindo ao desespero. Por outro lado, quem não se sente com
capacidade para se autoafirmar reduz suas possibilidades
de ser si mesmo, ou seja, renuncia uma parte de suas potencialidades, na
tentativa de salvar algo de si. Se o não-ser se
envereda a desvendar os mistérios do ser amplia-se e aprofunda-se o
autoconhecimento e, em consequência, as possibilidades de uma vida mais
saudável.
As ambiguidades do caráter neurótico podem ser compreendidas por meio
desta perspectiva existencial, a qual aponta que esse modo sintomático tenha
seu viés com a tentativa de negação frequente da angústia e com a
intensificação da baixa de autoafirmação, que acompanha uma relação, pelo menos
em parte, distorcida com a realidade.
Por esta perspectiva deslindada se objetiva compreender o modo anancástico ou obsessivo-compulsivo vivido por Ísis, relativo ao cuidado absoluto com os outros, que
envolve afazeres, bem como sua vivência depressiva. Modos estes construídos mediantes
à sua história e que caracterizam a construção de sua identidade, como
totalidade: suas crenças, valores, condutas, interesses, demandas, traços,
atitudes, percepções, vínculos, desejos, vontades, sentimentos, emoções etc.
Tal modo sintomático analisado por meio de uma visada compreensiva e
antropológico-existencial implica a saída de uma simplificação restrita ou
causal do entendimento do fenômeno, para uma visada vivencial ou global da
pessoa, que se manifesta em cada fenômeno percebido.
Por este trajeto,
“o fenômeno é o que, estando o mais frequentemente
escondido, pode ser traduzido a luz por certas modalidades
de abordagem ou que – mais raramente- está claro. Nos sintomas, que se mostram,
nós experienciamos que alguma coisa está presente, que
justamente não está clara, que justamente não se mostra, mas que somente se
anuncia ou se revela – a saber a doença ou a alteração. É porque as doenças se
anunciam nos sintomas, sem se mostrar, que os sintomas obrigam a inferências
diagnósticas...” (TELLENBACH, 1956 apud
TATOSSIAN, 2012, p.96).
Este modo de compreender o fenômeno implica o abandono das noções
tradicionais que, como considera Romero (2001) fundam a separação entre o conceito
e o sensível, entre aquilo que aparece e o que condiciona. Neste sentido, na
experiência como unidade fenomenológica, sujeito e objeto ou eu e mundo e Eu e
Outrem não são, como enfatiza, também, Tatossian
(2012), isolados e opostos. Daí, a contribuição crucial das fenomenologias, de
cunho existencial, que apesar das diferenças subscritas em que se colocam, ao
vislumbrarem a unidade, em sua totalidade, saem de um fundamento objetivo e
teórico do conhecimento, para aquele de caráter pré-objetivo
e pré-teórico da experiência própria.
O fenômeno humano, concebido assim, é muito mais do que apenas o
sintoma, ele comporta, como considera Romero (2001) as características
constituídas (dadas) e constituintes, as manifestações, suas significações e
sentidos, como modo global de ser do humano.
Perspectivar o fenômeno na clínica psicológica, dessa maneira, é perspectivar,
como afirma Lersch (1966), a experiência global do sujeito,
como totalidade bio-psico-anímico-existencial.
Por este viés, Romero (2001) salienta que a vivência anancástica
se caracteriza por modos valorativo, orientador e organizador da vivência
global, marcados pela vigilância, controle e “pré-ocupação”. E, que tal adoecimento
se constitua como uma vivência malograda, arrastada
pela circularidade, dada pelas forças do destino e, portanto, pela
impossibilidade que o sujeito sente de fugir de si próprio.
Este tipo
de círculo neurótico é constituído, como atesta Gebsatell
(1977) pela tríade obsessão-angústia-compulsão, sendo ela caracterizada pela
necessidade emergente de segurança. A insegurança, como sentimento crônico,
tanto pelo lado pático quanto
cognitivo-volitivo, responde ao psiquismo perturbador, que, geralmente, adota a
forma de fobia e como reação a este o psiquismo defensivo, que diz respeito aos
atos compulsivos, posto que o sujeito seja impelido a buscar um apoio.
No caso de Ísis tal apoio é orientado para o cuidado absoluto com o outro, mesmo que
ela não tenha condições de cuidar, aspecto este que lhe causa enorme
sofrimento, uma vez que afirma que gostaria de, muitas vezes, “falar não às
pessoas”, mas que seja algo que não se permite, mesmo que na exaustão. Recusar-se
ao cuidado com o outro ou mesmo adiar tal possibilidade parece lhe arrancar o
próprio centro da existência. Segundo ela,
fica sem direção e ansiosa; culpabiliza-se;
acometem-lhe pensamentos sobre algum mal que possa acontecer,
se não realiza a tarefa, “não tem paz”. Diz sentir repugnância por quem não
cuida e não resolve situações de modo determinado e exato como ela. Apesar de
que em seu prontuário conste queixas, anteriores, relativas a pensamentos que
lhe exijam determinados comportamentos, para evitar algum
mal, neste período de atendimento, Ísis se
ateve à questão da autoexigência e compulsão pelo
cuidado com os outros, como cerne temático.
O núcleo do padecimento compulsivo de Ísis se
evidencia com as características vivenciais do psiquismo perturbador da
obsessão e compulsão, especialmente, pelo controle e cuidado com o outro e com
as coisas. Tal modo se mostra constituir, no tempo e no espaço vividos, desde
criança e, especialmente, na adolescência, envoltos pelos sentimentos de
desamparo e desamor sentidos, principalmente, maternos, mas, também, paternos,
dado pelo abandono do lar pelo pai e a necessidade de Ísis
assumir os cuidados domésticos e dos irmãos, para a mãe trabalhar fora de casa.
Os sentimentos de desamparo e de desamor se traduzem, na linha
histórico-temporal de Ísis, pelo seu oposto absoluto
na relação com os irmãos, marido, filha e outros familiares, denotando um modo
caraterial persistente e, no seu caso, adoecido, no que tange à relação
interpessoal e objetal. Contudo, vive um decaimento existencial, posto que,
embora, se desdobre aos cuidados com todos e com tudo não se sente
suficientemente valorizada e amada por ninguém.
A depressão neurótica, vivida por Ísis,
acentua-se, especialmente, quatro anos após a morte da filha, a qual se mostra
constituindo um dos elementos estruturadores de seu Eu. A filha única, pessoa
com deficiência, parecia confirmar a sua potência, o seu “poder-ser”
mais próprio de “ser cuidadora”. Quando ela morre Ísis
investe, ainda mais, o seu tempo no cuidado obsessivo e exaustivo de terceiros,
especialmente, dos familiares, vivenciando-se, aí, o medo e a culpabilização intensa, se não realiza a tarefa. Entretanto, sem se sentir reconhecida e confirmada, por
eles, mina, em parte, a sua vitalidade, queixando-se não ter tido tempo para
viver o luto, em função dos outros e que precisa se cuidar. Busca, então, o
cuidado de si, por meio da psicoterapia, possibilitando-se, com o poder
criativo, inerente ao humano, um início para a retomada de si.
Na depressão neurótica, segundo Romero (2001, p.277) “já há todo um
histórico do sujeito e certa vulnerabilidade que o predispõe para o afundamento
nos períodos de crise, com períodos alternados de leves bonanças e de baixa
anímica”.
Também, Tatossian (2012, p.111-112) considera
que “o que está em questão na depressão é o si-mesmo
e não um objeto”. Isto resulta que o vivido de si do deprimido é
fundamentalmente um vivido de impotência, um vivido que se coloca para baixo.
Vivencia-se a incapacidade de responder a si mesmo, às coisas, aos
acontecimentos e aos outros.
E, tal como anuncia Romero (2007), na depressão, a perda ou privação de
um bem afeta o sujeito de forma mais contundente, do que aquela que afeta o
sujeito mediante à tristeza e desânimo eventuais,
posto que o leve a um estado desmotivacional
generalizado e a um sentimento de esvaziamento, bloqueando a capacidade de
reorganização da realidade, de acordo com as novas demandas. E, é assim que Ísis se apresenta em sua “pro-cura” pelo atendimento psicológico.
Para o estudo proposto tomar-se-á os modos constitutivos de ser e de não-ser si mesma de Ísis, de adoecer e de curar-se,
de negar-se e aceitar-se, movimentos estes envoltos por muita angústia, que, em
seu modo original é ontológica, mas que se torna patológica, em seu caso, em
função de seu modo malogrado de vivenciar as experiências. São expressos por ela sentimentos de baixa de autoestima, de
frustração, de desvalorização de si, de desamor do outro em relação a si, de
solidão e de culpa, constituindo-se, como ressalta Romero (2002), elementos
corrosivos e inquietantes do sofrimento humano e que tangenciam a vivência
neurótica, seja pelas vias da depressão ou ansiedade.
Passar-se-á, então, à compreensão dos modos vivenciais de Ísis, buscando-se contribuições teóricas possíveis, de
autores da psicologia, filosofia e psicopatologia fenomenológica e existencial,
como os já citados, sobre os elementos e fundamentos convergentes para uma
análise compreensiva e antropológico-existencial do caso em estudo, não
interessando, assim, uma única fonte. Sabe-se, desse modo, das diferenças de
ênfases que cada autor citado desenvolve acerca de sua construção teórica,
apesar do ponto de união ser à volta ao mundo da experiência, ou seja, ao
“mundo vivido”, “às coisas mesmas”, como cunhou Edmund Husserl. Outrossim,
considerou-se, como Dilthey, que a Psicologia
descritiva e analítica permite compreender o homem como entidade histórica e
não como uma substância, sendo o enigma da vida não apenas questões do intelecto
ou de representações, mas aspectos da vida que se apresentam em luta dentro do
coração humano. Espera-se que esse estudo vislumbre reflexões sobre a
importância da compreensão das vivências, ou seja, das atribuições de
significados e sentidos que as pessoas constroem em seu continuum
histórico-temporal e que estão intimamente correlacionadas com os afetamentos nas esferas estruturais da existência: corpo,
psiquismo e espírito.
Descrição de alguns elementos fundantes da história vivencial de Ísis
Ísis iniciou a psicoterapia, na
clínica-escola, no segundo semestre de 2017, sendo encaminhada pelo Centro
Psicossocial da Defensoria Pública de Minas Gerais. O registro no relatório de
encaminhamento apontava que ela se demonstrava emocionalmente fragilizada, em
relação a situações vivenciadas na família e que, quando orientada pelos
profissionais, despertou-se ao interesse de acompanhamento psicológico.
Ísis é uma mulher negra, magra e
parece ter, em média, 1.65m de altura. Apresenta certa vaidade e preocupação
com os aspectos do autocuidado estético, usa penteados diversos em seu cabelo
afro, lançando mão de tiaras, tranças e o black
power. Os tecidos das roupas e batons que usa são
de tons leves e neutros, como tons pastéis e bege.
Quando se apresentava sem batom e esmaltação nas
unhas, geralmente, no estado de ânimo mais depressivo, comentava se sentir
apagada, sem nenhuma luz, mas justificando-se não ter tido ânimo para tal. A
postura corporal, durante os atendimentos iniciais, era de encolhimento e rigidez,
marcados por pernas e braços cruzados, especialmente, quando
discorria sobre a perda da filha ou sobre a falta de reciprocidade afetiva,
sentida em suas relações interpessoais, especialmente, com familiares.
Acredita que se doa para além de suas condições e que não seja reconhecida,
desde sua infância.
Ísis tinha 58 anos à época do início
do atendimento psicoterapêutico, casada há vinte anos, com seu esposo de 66
anos, afastado do trabalho de construção de casas, devido a um acidente, há
mais de dez anos. Residem numa limítrofe região de
Belo Horizonte, em imóvel próprio.
Tiveram uma filha, que nasceu com paralisia cerebral, falecendo aos 13
anos de idade. Havia sete anos de luto, quando Ísis
iniciou a psicoterapia, sem elaborações significativas, aspecto este queixado
por ela. Segundo Ísis, “o marido sofria o mesmo mal,
já que não permitia fazer mudanças no quarto da filha, mantendo intactos os
objetos e que, no caso dele, se recusava a buscar ajuda, para o sofrimento”.
Ísis conta que quando a filha tinha 5 anos de idade o esposo sofreu grave acidente de trabalho,
afastando-o das atividades laborais por longos meses. Diz que o período de
recuperação do esposo foi uma fase, demasiadamente, difícil, pois se desdobrava
entre os cuidados com ele e com a filha, uma vez que o esposo não aceitava que
outras pessoas, incluindo familiares, fizessem o seu cuidado. Desde então,
observou o uso crescente de bebidas alcoólicas pelo esposo, no período noturno,
ao ponto de tal fato lhe causar incômodo.
Tal queixa aparecendo, frequentemente, nas sessões, todavia sem um
movimento qualitativo por parte de Ísis. Relata,
ainda, que sempre teve um bom relacionamento com o companheiro, no entanto,
queixa-se, de modo persistente, quanto a sua postura de dependência afetiva,
tendo como exemplo, o fato de ela ter que colocar as refeições no prato e
servi-lo, dentre outros hábitos na demanda de cuidados, que a desagrada.
Todavia, não cogita, também, possibilidades de mudança em relação a tal aspecto.
Contudo, segundo Ísis, no que diz respeito aos
cuidados com a filha, devido ao seu quadro clínico, o esposo a auxiliava
bastante.
Ísis estudou até o ensino médio, fez
curso técnico em enfermagem, diz que, em seu período escolar, sempre teve muita
dificuldade com relacionamentos; que não tinha amigos e que tinha muita
facilidade em aprender. Acrescenta que suas relações sociais se ampliaram um
pouco mais quando passou a trabalhar em um hospital. Ela abdicou da profissão,
após 15 anos de trabalho, para se dedicar aos cuidados da filha, desde o diagnóstico
de paralisia cerebral. Explana frustração com a enfermagem, afirmando não
possuir mais gosto ou interesse de atuação nesta profissão, devido, segundo
ela, aos maus tratos recebidos pela filha, por diversos profissionais da saúde.
Aponta, recorrentemente, que sempre cuidou de todos com muito zelo e que sua
“filha não recebeu os cuidados devidos, assim como ela o fez e faz a vida toda
com todas as pessoas”.
Ísis é a segunda irmã de quatro
irmãos, sendo dois já falecidos, um aos 44 anos e o outro ainda criança. À
época do falecimento da filha, sua mãe estava com pouco mais de 80 anos de
idade, necessitando de seus cuidados, vindo o pai a falecer em 2012. Descreve
que não tivera bom relacionamento com a mãe, devido a sua ausência afetiva,
excesso de cobranças a ela nos cuidados domésticos e com os irmãos, além de
falta de reconhecimento e gratidão pelas tarefas realizadas. Retrata, também,
que sempre teve dificuldade na relação com os irmãos, principalmente com a irmã
que é dependente de álcool e outras drogas, havendo diálogo restrito entre
ambas, embora cuide, de forma bem próxima dos dois sobrinhos, uma vez que a
irmã, para essa, não possua condições afetivo-emocionais de cuidar e
ampará-los.
O pai de Ísis, senhor austero, se separou da
mãe há mais de quarenta anos. Nesta época, apesar de ser adolescente, segundo
ela, teve que assumir todos os serviços domésticos e cuidados com os irmãos,
para que sua mãe pudesse trabalhar em várias funções, para sustentar o lar. Acrescenta, de modo enfático e nostálgico, que tanto sua
infância quanto adolescência não foram vividas, mas perdidas no cuidado com os
outros. Todavia, salienta seu gosto em ajudar e cuidar das pessoas, tendo
dificuldade em “dizer não” a quem solicite ajuda. Aponta que mesmo na exaustão
se prontificava a cuidar do outro e que isto seja sua missão, um atributo
divino, o qual é confirmado por sua mãe, atualmente, o que muito lhe agrada.
A mãe de Ísis casou-se, novamente, quando ela
tinha 13 anos de idade, permanecendo nesta relação até então. Ela ressalta que
tal relação a desagrada, já que atribui valor sagrado ao matrimônio e que,
sendo assim, deva ser eterno, como preceitua a sua religião católica. Afirma, veemente, caso fosse obrigada a se separar que não
se casaria novamente. Sua mãe e o seu padrasto se encontram com saúde
vulnerável, necessitando de cuidados intensivos, sendo ela responsável por
todas as demandas. Apesar dos dois irmãos morarem com a mãe, Ísis se considera a única responsável por todas as demandas
de cuidado, uma vez que a irmã e o irmão, não se prontificam a ajudá-la e que
quando o fazem não realizam da forma correta. Daí que prefira assumir as
responsabilidades dos cuidados, sozinha, “para evitar atrito e fazer de modo correto
o que tem que ser feito”. Ísis
demonstra e ressalta seu sentimento de desamparo e abandono materno que se
estende em sua linha histórico-temporal, além do sentimento de ausência e de
descuido paterno, devido ao abandono do lar. Salienta que possui preocupação
excessiva em realizar as tarefas de cuidado com o outro de forma sempre
metódica, primando pela perfeição e que, muitas vezes se sente exausta, mas não
repassa a tarefa para terceiros, por acreditar que seja esta a sua missão. Diz
assumir tarefas, como o cuidado com os sobrinhos, com amigos e vizinhos, além
dos cuidados com a mãe e o padrasto, mesmo percebendo, atualmente, não ter
energias para tal, dado o esgotamento físico e mental. Acrescenta que, não
consegue se abster das tarefas, posto que se sente,
enormemente, culpada e ansiosa, perdendo sono. Daí, que prefira assumir o
compromisso, mesmo que desvitalizada, para ficar em paz consigo mesma.
O estado de ânimo de Ísis que tendia à
depressão foi observado em acompanhamento psicológico, com sua entrada na
clínica-escola, em 2017, ainda que havendo sua recusa
ao acompanhamento psiquiátrico, até 2018. Fazia uso de fluoxetina, desde a
morte da filha, prescrito por clínico geral, utilizando o medicamento de acordo
com sua demanda pessoal. Em 2019 ela aceita a orientação e o acompanhamento
psiquiátrico, não obstante, mantém a falta de rigor em relação ao uso do
medicamento e consultas periódicas.
Ísis demonstra um círculo social
restrito, com menção apenas dos familiares e de uma “ex-amiga”,
que tinha em grande conta, mas que após um episódio de “traição” passou a
possuir reservas com amizades. Há pouco contato com vizinhos, a não ser aqueles
que dela necessitem para cuidar de seus filhos, em algum momento de suas
ausências, o que, segundo ela, faz com satisfação, demonstrando, sempre,
solicitude. Em seu prontuário consta que frequenta a igreja católica de seu
bairro, contudo sem muita assiduidade. Justifica seu restrito convívio social
devido aos cuidados que tinha com sua filha, lhe restando pouco tempo para
relações interpessoais, além de que nunca tenha tido facilidade de convívio
mais amplo.
Ísis demonstra temperamento
introvertido, em contraste denota boa comunicação verbal, no processo psicoterapêutico,
quando o estado de ânimo lhe permite. Descreve sua rotina diária habitual
dizendo que pela manhã cuida dos afazeres domésticos, que nunca se esgotam,
posto que gosta das coisas muito bem-organizadas,
levando bastante tempo para executá-las e que no período da tarde reserva-o
para resolver problemas familiares, que, geralmente, estão sempre ali para ela
solucionar, também não se esgotando, ao contrário, parecem, como ela menciona,
“uma bola de neve”. Apesar do descontentamento de Ísis
em suas relações familiares, que se arrasta desde sua infância, demonstra dedicação
e zelo desmedido com seus membros.
Nas sessões iniciais, Ísis retrata, com esmero
o seu sofrimento nas várias áreas que, como aborda Romero (2003) percorrem os
planos da existência humana: afetiva, interpessoal, axiológica, valorativa,
corporal, espaço-temporal, motivacional, denotando não realização e sentimentos
intensos de frustração e impotência. O seu estado de humor, geralmente, se apresenta
oscilável entre a ansiedade e a depressão, destacando-se os sentimentos de
frustração, de tristeza, de insegurança, de baixa de autoestima, de angústia e
culpa. Já as principais emoções são relativas à raiva, mesmo que contida, medo
e choro intenso, recorrentes. Tais sentimentos e emoções expressados apresentam-se
relacionados à falta de reciprocidade afetiva, por parte dos familiares, que
ela afirma ter sido desde sua infância, e à perda da filha. Não são muitos os
momentos em que Ísis se apresenta de forma mais
relaxada e descontraída, trazendo relatos de experiências prazerosas e que
atestem felicidade.
As vivências de Ísis,
na tessitura histórico-temporal de sua existência
Segundo Lersch (1963) o homem se constitui
como uma totalidade, bio-psico-anímico-existencial,
sendo que os fenômenos psicológicos sempre estão integrados a um caráter
global. Neste sentido, as vivências têm o seu círculo funcional ligado por um
significado comum, ou seja, a pessoa é integração total e estruturada da vida
psíquica. Como salienta Dilthey (2008) as vivências (Erlebnis – em alemão), ou seja, os atributos ou qualidades
doadas às experiências, se dão de modo conectado à
historicidade. Assim, a estrutura psíquica não é uma simples soma de partes,
mas um conjunto organizado e interligado, numa perspectiva histórico-temporal.
Daí, que os modos vivenciais não sejam iguais em todos os homens, sendo difícil
ou impossível encontrar regularidade no comportamento humano.
A dimensão temporal vivenciada pelas pessoas aponta para a condição de
que a vida se realiza sob a forma de dever e de acontecer, mantendo relação especial
com a unidade do tempo, que envolve os três elementos: passado, presente e
futuro (LERSCH, 1963).
Romero (2004, p.108), corroborando tal perspectiva, designa que o homem
é um ser temporal e temporalizante. Temporal, porque
é finito, mediante sua condição mortal e temporalizante
em virtude de que viva num presente, condicionado pelo passado e aberto as possibilidades futuras. Posto assim, a unidade temporal
do ser, como historicidade e cotidiano, anuncia que ele seja finito e o é em
processo, ou seja, não no sentido de que ele cessaria, mas de que exista
finitamente, sendo que, quanto maior a compreensão e aceitação dessa condição
maior a liberdade de posicionamento do homem no mundo.
Romero (1998), retratando a dimensão da temporalidade, destacada por
Heidegger, como uma das características ontológicas, aborda que a
horizontalidade e a simultaneidade como fundamentos da historicidade humana
divergem da simples historiografia linear e sucessiva, uma vez que, os sujeitos
temporalizam, ou seja, dão sentidos, reconstituem, atualizam e fazem projeções
de suas histórias. “A existência se temporaliza, isto é, se constitui como
passado, se articula e atualiza no presente e se
projeta e transcende no futuro” (ROMERO, 1988, p.333).
Nesse sentido, como considera Romero (2004), ainda referendando-se em
Heidegger, o processo de adoecimento/saúde compõe desdobramentos do cuidado de
si, no continuum temporal vivido, uma vez que todo homem
se constitua em suas relações com o mundo. Elucida-se, então, que seja, também,
o descuidado de si uma forma, mesmo que equivocada, que o sujeito “arranje”
para se cuidar, para manter a centralidade do seu Eu.
Ísis ao
buscar a perfeição absoluta no cuidado dos outros e, também, das coisas, fecha
o cerco para as imprevisibilidades próprias da vida, afunilando-se, no percurso
da sua temporalidade, restringindo sua liberdade e compreensão para outros
modos de ser. Compreende-se mais com vistas à sua capacidade de perfeição e
controle das coisas, sem vacilar. Isto lhe foi exigido desde a infância. Ela
relata como queixa repetitiva, que se mostra estender em sua linha temporal, as
experiências, desde que era criança, de “ter que dar conta do cuidado com o
outro e, também, do cuidado com as coisas, de forma perfeita”, se autocondenando
se não o faz bem. Segundo ela, no menor deslize “se sente insegura, sem chão,
fica angustiada e culpada”. Concomitante a isto, sente extrema necessidade de
aprovação, reconhecimento e estima do outro, em relação aos cuidados, por ela
executados. Isto vai aparecendo em seu discurso, recorrentemente, notando-se
que estes elementos significativos (ou unidades de significado), presentes em
seu discurso, trazem em si aquilo que é essencial em seu existir. Tais
elementos ou unidades apontam dilemas importantes vividos, que caracterizam uma
vivência temporal em círculos, além de um espaço vivencial sentido como
determinado, obrigatório, afunilado e esvaziado.
A vivência espacial, assim como a vivência temporal, se constitui como
uma dimensão existencial. Dimensão esta que diz sobre o modo distintivo das
pessoas sentirem os espaços relacionais, ocupados por elas, espaços estes que
são sempre tímicos, afetados por uma coloração afetiva fundamental. Ou seja,
não é uma ocupação simplesmente diante de nós, mas, como aborda Binswanger (1977), uma ocupação que atravessa o páthos inerente à situação e que revela sentidos.
Sentidos estes que se dirigem para um equilíbrio ou desequilíbrio das
realizações, nomeadas por Binswanger como “proporção
e desproporção antropológica”, respectivamente. A justa proporção se dá pela
proporção vertical e horizontal entre a ascensão (altura) da realização
existencial e a experiência de alargamento (largura) da visão da vida. A saúde,
neste sentido, acontece, como a justa proporção, para ascender, proporcionalmente,
e compreender a si e ao mundo. O adoecimento, ao contrário, exibe a desproporção
da vivência espacial, o muito alto ou o muito baixo, o muito largo ou o muito estreito.
Ísis, desde a infância, ocupou um
lugar que não lhe era próprio, como criança, ou seja,
assumiu responsabilidades maternas ao ter que realizar o cuidado com os irmãos
e os serviços domésticos. “Sem dar conta”, como ela mesma afirma, tentava
sempre fazer o melhor, mas quase nunca, segundo ela, recebeu gratidão das
pessoas, as quais cuidou, especialmente, dos irmãos e
da mãe. O abandono do lar pelo pai e a saída da mãe para o trabalho, em busca
de sustento para os filhos, coloca Ísis, numa
condição de realizar atividades domésticas, para além de suas condições infanto-juvenis.
Tal experiência resulta num sentimento de desproporção espacial,
conforme Binswanger (1977) denomina, uma vez que
experimenta um espaço (lugar) que não lhe é próprio, ou seja, assume as responsabilidades materna de cuidar e não se percebe ou
sente cuidada e amparada, como criança e adolescente. As contingências da vida
“rouba-lhe”, como ela própria relata, a sua infância e adolescência, sua
espacialidade é suprimida, sobra-lhe apenas um espaço esvaziado dos cuidados
materno e paterno e estrangulado pela obrigação de assumir um lugar que não lhe
pertencia, além do fato de não se sentir reconhecida. Ísis
sente-se rebaixada, não valorizada e não reconhecida pelos seus esforços. Ao
restar-lhe o lugar de cuidar do outro ela se sente no dever de “cuidar bem”,
assumindo a responsabilização de tudo e de todos, parecendo, digamos assim, que
isto pudesse lhe garantir alguma recompensa: o amor, a gratidão e a confirmação
do outro, de seu lugar no mundo. Esse valor construído acerca do “cuidar bem”,
ao longo de sua vida, demonstra ser aquilo que assegura a centralidade do seu self,
de seu pertencimento ao mundo, não permitindo que ninguém “lhe roube”,
também, este espaço construído.
Nos seus relatos ela lembra, com
detalhes, da sua exaustão, quando criança, “de tanta coisa que dava conta”,
dizendo, ainda, “atrair-se” para o cuidado com o outro, posto que, mesmo depois
de casada, “sempre teve que assumir”, segundo ela, os problemas dos irmãos, já
adultos, seja devido à dependência química da irmã, que não cuida bem dos
filhos e que ela os assume como seus, seja “o irmão que, também, vive dando
trabalho, além do marido que é uma pessoa dependente”.
Atualmente, Ísis diz ter que cuidar da mãe e
do padrasto, idosos e adoecidos, os quais somente ela sabe cuidar, posto que o
que pede aos irmãos, não o fazem adequadamente. Além
dessas atividades, comenta que tudo que os vizinhos precisam recorrem a ela,
principalmente, nas orientações relativas aos seus filhos ou, ainda, para
cuidar deles, quando se ausentam. Ísis diz assumir
estes compromissos, mesmo “sem dar conta”, uma vez que “não consegue dizer
não”, já que sente culpa e tem pensamentos que algum mal possa acontecer, caso
não cumpra sua missão. Desse modo, Ísis segue sua
existência, persistindo no sim, a qualquer custo, como uma eterna dívida, a
qual não liquida a conta! Dizer “não” ao cuidado com o outro e às tarefas
decorrentes do mesmo, para ela, talvez, seria “trair-se”, já que dele
necessita. Estaria, ela, na recusa do cuidado do outro
abandonando a si própria?
Ísis afirma: “eu vim ao mundo para
cuidar das pessoas, atraio isso para mim. Cuidei bem dos meus irmãos, dos meus
sobrinhos, agora de minha mãe e do meu padrasto, além do meu marido que,
também, está adoentado. A minha filha foi super bem
cuidada por mim e tenho certeza de que se eu estivesse em casa, quando ela
passou mal, ela não teria morrido”.
“A-trair-se” para o objeto “cuidado”, segundo Ísis, quando feita intervenção psicoterapêutica,
significaria “não negar ou trair aquele valor e habilidade
que lhe são mais próprios, ou seja, cuidar do outro. Não “trair”,
talvez, também, pudesse ter um sentido de não trair ou descuidar do outro,
assim como ela própria se sente em relação aos pais que, segundo ela,
descuidaram dela, a abandonaram num imenso vazio, o qual cabia apenas responsabilidades,
apesar da sua falta de condições como criança e adolescente. E, ainda, traída
pelos irmãos que não são gratos e pela “ex-amiga” que
já não é merecedora de confiança.
Segundo Binswanger (1977) a desproporção da vivência
espacial é relativa à acentuação e absolutização de
uma direção de sentido, descaracterizando a dialética da polaridade “baixo-cima
(verticalidade); esquerda-direita (horizontalidade)”, o que resulta numa flexão
excessiva para um dos lados.
Ísis ao tender para o cuidado do outro, descuidando de si, até a exaustão,
aponta para um significado e direção de sentido importantes,
remetendo tanto ao desejo da valorização de si quanto à angústia e culpa
de que se não ocupar aquele espaço do cuidado, oportunizado pelos outros ou manipulado
por ela própria, poderá perder o seu próprio eu. Não obstante ela reafirma que
“é o que sabe fazer melhor e que de uns anos para cá a sua mãe tem dito que ela
é muito habilidosa em cuidar das pessoas e que isso lhe faz muito feliz”. Esta
sua afirmação demonstra sentimentos de valia, de “poder-ser”,
de prazer e contentamento, posto que se percebe
confirmada em algum lugar no mundo, especialmente, no lugar da afetividade materna,
outrora sentida como esvaziada.
No paradoxo entre cuidado X descuidado, Ísis cuida do outro, em
excesso, e descuida de si mesma, também, em excesso. Na tarefa de cuidado com o
outro, ela não sente reciprocidade, sendo essa a sua queixa central. Diante do
descuidado consigo, que é substituído pelo cuidado
excessivo do outro, ela desenvolve uma convicção negativa de que não possa contar com ninguém, como apoio ou
proteção. Ancora-se nessa crença que está arraigada em sua dimensão temporal, desejando, pelo
menos, o
reconhecimento, a valorização do outro, já que se abnega de si.
Para
Romero (2001) o desejo e o desejável estão ontologicamente subordinados à
valorização e esta é a confirmação de si em relação a
um ente determinado. Assim,
[a]s crenças vitais são os pressupostos existenciais que sustentam o
sujeito, a seiva vital que o mantém, impulsionando-o a determinadas direções e
por vezes extraviando-o e inclusive sufocando-o, depende isso o valor implicando
na crença…apenas nos estados depressivos as crenças
têm feição de pura negatividade e da destruição. O mais comum é que prevaleçam
como pressupostos existenciais aqueles que nos vitalizam (ROMERO, 2001, p.77).
Laing (1982, p.95), ao discorrer sobre
tal aspecto, também, aponta que as interações humanas subtendem, em certa
medida, a confirmação, sendo que “o mais ligeiro sinal de reconhecimento do
outro confirma pelo menos a presença da pessoa em seu mundo”. De outro modo, a
negação proporciona o não reconhecimento ao ato evocatório.
Ísis não se sente reconhecida como
filha, desde a infância, este papel é tolhido pelo outro e, no decorrer de sua
linha temporal, por ela própria. Daí, que, talvez, se possa elucidar que ela
tente responder pelo papel de cuidadora, de “mãe zelosa” de todos, “mesmo sem
dar conta”, como ela repete, em seus discursos. Em oposição, não se sente, também,
confirmada pelos outros, neste “lugar de mãe” (de cuidadora). Então, frustra-se!
A vivência do cuidado absoluto com o outro, na história de Ísis se mostra demarcada por um contorno temporal-espacial,
dada pela “repetição quantitativa" (KIERKEGAARD, 2009) ou circular. Os
sentimentos de angústia e de culpa podem aparecer na clínica, por meio das
"repetições qualitativa e quantitativa" (KIERKEGAARD, 2009). A
“repetição qualitativa” refere-se às experiências vividas, as quais o experienciador relaciona-se consigo mesmo, no processo de
angústia, transformando a vida psicossensorial em
singularidade, no âmbito da inconclusividade, tendo o Eu como conquista. Deste
modo, tornar-se implica um processo de ser, mediante à
tensa e descontínua dialética da existência e que se dá pela síntese finitude-infinitude (real-imaginário), temporalidade-eternidade,
necessidade-possibilidade, necessidade-liberdade, desejo-vontade, razão-emoção
etc. A repetição qualitativa é, pois, segundo Kierkegaard
(2009) uma recuperação, uma reapropriação no sentido
de escolher a determinação existencial, que permita ao experienciador
ser de novo, encontrar-se com um outro de si mesmo. Se a repetição não for
realizada na direção da determinação fundamental, do tornar-se si mesmo, o experienciador caminhará desesperado para o âmbito da repetição
quantitativa, negando a aceitação da angústia e culpa
sentidas, aprisionando-se na circularidade dos adoecimentos psíquicos, como é a
situação vivida por Ísis.
Nessa última acepção o desespero é, portanto, a doença
mortal, esse suplício contraditório, essa enfermidade do eu: eternamente
morrer, morrer sem, todavia, morrer, morrer a morte. Porque morrer significa
que tudo está acabado, mas morrer a morte significa viver a morte; e vive-la
eternamente (KIERKEGAARD, 1979, p.341).
Ísis demonstra, com seu modo de ser,
o seu empenho em cuidar de tudo e de todos, com máxima perfeição, o que,
geralmente, a leva à exaustão. E isto se acentuando após a morte da filha,
quando ela se desdobra no cuidado demasiado com terceiros, numa tentativa
desesperada, possivelmente, de preencher o lugar esvaziado, deixado pela filha,
e de se libertar da culpa sentida, em função de que não estivesse presente,
quando ela faleceu. Lugar este que a confirmava como uma “cuidadora especial”.
Em suas palavras: “Deus me deu uma “filha especial”, porque “sou especial”.
Cuidei muito bem dela, não deixei faltar nada, cuidava dela 24 horas. Mas, por
que Ele a tirou de mim e justo quando eu não estava presente? Ele sabe o que
faz, não é mesmo? E, todos sabem que eu não deixei faltar nada para ela, minha
vida era cuidar dela. Talvez, eu já tivesse cuidado o suficiente!”
Há no discurso de Ísis um misto de sentimentos
vividos, mediante à morte da filha: o sentimento de
injustiça divina e ao mesmo tempo a tentativa de conformidade, dadas suas
crenças e valores religiosos; o sentimento de frustração; o sentimento de
revolta e de sua negação; os sentimentos de angústia e de culpa.
Os sentimentos de angústia e culpa são unidades importantes, muito demarcadas,
que aparecem em seu discurso, na maioria das sessões, quando ela ressalta que
não entende o motivo pelo qual não consegue aceitar a morte da filha; a sua
dificuldade em dizer não, quando o assunto é cuidar, mesmo que ela não dê
conta; bem como sua dificuldade de aceitar que não tenha culpa, da filha ter
passado mal e morrido, em sua ausência. Em relação a este último elemento ela
justifica que “estava ausente porque tinha ido ao supermercado comprar coisas,
justamente para cuidar da filha”.
Ísis ao vivenciar a perda da filha,
que lhe exigia cuidados intensivos, parece ter o sentimento de perda daquilo
que demarcava o seu melhor e “especial” valor, que construiu ao longo de sua
existência: “saber cuidar dos outros, como uma pessoa especial”, que pensa ser.
E, talvez, como uma mãe especial, que ela nunca tenha sentido ter. Este valor,
como seu eixo orientador, é aquele que ela acredita, segundo seus relatos, que
possa lhe dar um lugar ao mundo de apreciação pelos outros, de consideração e
respeito, posto que dedicou sua vida ao cuidado,
inclusive como profissional, antes de engravidar da filha. Eis, que tal perda a
coloque em desespero, vivendo “a morte de seu eu”, em um “enlutamento
eterno” pela filha, numa busca, desesperada, para justificar o possível
“descuido” da morte, tanto para si quanto para os outros; além de uma corrida
obsessiva para cuidar de terceiros, buscando demarcar sua experiência e eficiência,
em tal tarefa. Ora, aceitar a morte da filha seria, talvez, aceitar o seu
próprio fracasso como cuidadora, a perdição de seu maior valor, aquilo que
constitui sua própria identidade.
Ísis repete, na maioria das sessões:
“se eu não estivesse ausente ela não teria morrido, eu a teria salvado”! Ísis se percebe e se sente com o poder do cuidado, culpabiliza-se por “não ter salvado” a filha, não se permitindo
ter sido “imperfeita”, ter falhado, segundo suas considerações. Permitir-se
assim, seria, possivelmente, retirar o seu Eu do eixo orientador. Tal culpa
sentida por Ísis se faz, ainda, mais acentuada devido
às cobranças do marido dirigidas a ela, por ela não ter estado presente e por
ele nada ter podido fazer, devido à sua falta de habilidade, que são
confirmadas por ela.
Nota-se que a questão do cuidado faz parte da constituição valorativa do
seu Eu, não obstante, um cuidado absoluto com o outro e negado em relação a si
mesma.
Romero (1998) sublinha como uma das importantes dimensões humanas a
dimensão valorativa, observando que os valores não existem per se, como
atributos ou propriedades das coisas, são sinais inscritos pelas pessoas, como
modo de hierarquizar e avaliar seu campo vital; possuem um selo social; são
inerentes à estimativa sobre as escolhas; implica um juízo ético. Ele observa,
ainda, que os valores tomados pelas emoções, sentimentos e sem crítica tendem a
outorgar à submissão e alienação de si.
Aliada à dimensão valorativa, pode-se conceber que o vetor caracterial, ao referir “aos modos persistentes de relação
interpessoal e objetual”, como considera Romero
(2004, p. 110), incide diretamente sobre os valores constituídos pelos
sujeitos. O caráter, desse modo, quando
persistente na conduta ou na vivência do sujeito constitui seus traços e
atitudes essenciais e em seu aspecto propositivo e ativo é o que se pode chamar
de vontade. Assim, “os traços caracteriais correspondem
às qualificações que caracterizam o Eu da pessoa”. Romero, ainda ressalta que,
na vida muitas pessoas promovem um corte em sua trajetória vital, implicando
novas formas de conduta e mudanças, pelo menos, em alguns aspectos, dadas as
experiências e impactos vividos, outras persistem com seus modos, mesmo
mediante às frustrações e aos fracassos, o que pode
gerar adoecimentos. Elucida-se, aqui, a persistência de Ísis
em relação ao seu valor ao cuidado obsessivo com o outro, mesmo diante de seus
insucessos.
Lersch (1966, p.135) considera que não
sendo o homem somente um centro vital biológico-corporal, com tendências de
conservação e segurança, desenvolve-se, também, como portador individual de
valores, os quais se acham incluídos em uma ordem hierárquica, acerca de sua
realidade particular. Tais valores somente são conhecidos e fundamentados pelo
próprio homem que os constituem. Nesta esfera suprabiológica
o homem reflete seu eu individual e figura-se como tal. Nesta perspectiva,
ocorre que o homem receba a imagem de valor de seu Eu, sobretudo, em função dos
juízos de seus semelhantes, tendo o Eu a necessidade especial de estimação.
Lersch (1966, p.136) considera, ainda,
que a forma exagerada de necessidade de estimação corresponde ao conceito de
egolatria e ânsia de poder, o que se pode chamar, também, de ânsia de
notoriedade, esta ânsia aparece sempre perante a necessidade suprema de
fortalecimento do Eu, o que é marcado pelo absurdo, pela insaciabilidade e pela
falta de limites, diante da busca da estimação.
Os modos vivenciais de Ísis, no continuum de sua linha temporal, denotam
sentimentos intensos e persistentes de frustração, relacionados à estimação e
reconhecimento por parte do outro, sobre o quanto e como ela exerceu e exerce
suas atividades laborais de cuidado, especialmente, para com os familiares.
Romero (1998; 2004) sublinha que a dimensão laboral ou da práxis é
vivenciada por cada um, mediante as experiências contínuas do existir, que vão
se organizando e seguindo alguns valores e padrões. Pela ação e expressão a
pessoa se objetiva, manifestando e concretizando o que é pura subjetividade, ou
seja, o que é sua vivência ou experiência interna e é por esta via que seja
possível ao humano sentir a autorrealização. Neste
sentido, o trabalho seria a forma mais socializada da práxis, uma vez que
envolva o coletivo, com a sua amplitude das relações interpessoais.
Como salienta Lersch (1966, p.290) a luta pela
existência, ou seja, pela conservação e pela realização de si mesmo, é uma das
formas pelas quais a pessoa alcança a experiência de sua posição no mundo, manifestando,
aí, seu próprio “poder-ser, que é em realidade um
estado de ânimo, movido por um valor e pela própria dignidade”. Os sentimentos do próprio poder e do valor se encontram em conexão e se
afetam tanto no sentido da elevação exacerbada quanto de sua debilidade, o que
compromete a afirmação do Eu.
Por este viés, Romero (2002) alerta que o sentimento de frustração
persistente é uma das formas mais comprometedoras do sofrimento humano, podendo
emanar de uma das várias áreas da existência, mas, por essa ser primordial à
pessoa se estende às demais e que, neste caso, a pessoa pode contaminar toda a
sua vida. A maneira de expressar este sentimento dependerá tanto do caráter
quanto do temperamento de cada um; nos sujeitos de temperamento extrovertido é
demonstrado de modo mais franco e direto, nos astênicos de modo queixoso; no estênico, de forma mais vital, sobressaindo a agressividade.
No caso de Ísis, que possui um temperamento
astênico seus sentimentos de frustração se mostram por lamentos e vitimizações,
demarcando um misto de debilidade em relação ao “poder-ser”
si mesma.
Romero (2002, p. 167) salienta que o sentimento de malogro pessoal
“emana da convicção pessoal profunda de uma falha e uma inépcia lamentável para
conquistar os bens essenciais da vida – o amor, o reconhecimento, o bem-estar
espiritual, a estimação do próximo, um status digno”. Isso não significa que a
pessoa se sinta totalmente inferior, pode até ser o contrário, mas existe algo
que lhe corrói a alma. A dialética que se apresenta, segundo Romero (2002), é o
sofrimento pelo fracasso em uma área essencial e a revolta e negação para
aceitar tal fracasso.
A circularidade vivida por Ísis entorno do cuidado constitui
elemento orientador do seu adoecimento, ou seja, aponta o desenvolvimento do
seu modo sintomático anancástico; que se associa à depressão neurótica, que vai
sendo constituída em sua linha histórico-temporal, acentuando-se, de modo
reativo, após o falecimento da filha.
Como ressaltado por Romero (2001, p.261), ao se remeter às vivências
depressivas, por meio da alegoria de Kafka - “O Abutre”, Ísis,
com a morte da filha, sente o abutre devorar-lhe com
o bico. Após os ataques recebidos no rosto, um dos centros da identidade
pessoal, e nos pés, base de sustentação do sujeito, o Abutre atinge as
profundezas do seu ser. Ísis se sente sem poder. Até
então, lutava pela estabilidade do seu Eu por meio da vigilância e controle,
entretanto, com o sentimento de não reconhecimento pelos outros, a respeito de
sua dedicação desmedida de cuidar, e com a perda da filha se sente sem rosto e
sem pés, não conseguindo um lugar seguro para aportar. Para compreender tais
vivências experimentadas por Ísis, comecemos por seu
modo anancástico de cuidar dos outros.
Sobre o modo de ser anancástico de Ísis
O modo de ser obsessivo-compulsivo ou anancástico,
segundo Gebsattel (1977), se caracteriza pela presença
necessária da tríade vivencial: obsessão-angústia-compulsão. Anancástico é um termo de origem grega: Anankástico,
tendo a raiz ananke o significado
de fatalidade, força, restrição, necessidade. Este modo vivencial estaria
relacionado ao caráter de inevitabilidade, devido à impossibilidade vivida pela
pessoa de fugir de si própria, possuindo tal vivência uma natureza fóbica,
todavia diferenciada das fobias puras.
Gebsattel (1977) considera que
a vivência anancástica se constitua pela dupla
presença de um psiquismo perturbado e defensivo: perturbado pelo medo e pela
insegurança e defensivo ao se expressar pelas atitudes absolutas, por exemplo,
de repúdio, verdade, bondade, justiça, veracidade, exatidão, cuidado/proteção,
limpeza, pureza, honestidade etc; denotando rigidez,
fanatismo, programação e pedantismo.
A insegurança crônica dada tanto pela disposição afetiva (lado pático) quanto pelo aspecto cognitivo-volitivo
responde à presença da dupla perturbação, que aponta para a incapacidade do
sujeito de agir-construir, sendo o empreendimento de algo novo fadado ao
fracasso. Por isso, Gebsattel (1977) considera que o anancástico faça o que não pretende fazer e não possa fazer
o que se pretenda. Por isso, a vivência anancástica
diz respeito a um fenômeno alheio ao Eu, já que este se torna um expectador da
experiência perturbadora, a qual implica luta, e ruminação, havendo apenas uma
suspensão provisória da experiência, posto que ela esteja sempre a se
reiniciar. A angústia se expressa, primariamente, pela própria inerência do
existir humano e, secundariamente, pelo temor angustiado de que uma vez não
cumprido o ritual algo ruim possa acontecer. A angústia secundária, então, é reativa,
obrigando o sujeito a realizar os rituais, de forma que não falhem. Assim, a
angústia se torna sentimento não apenas avassalador, que é aquela que todos os
humanos sentem, mas toma um curso que aprisiona a pessoa em um círculo vicioso,
o qual se assenta na dúvida e na insegurança. A angústia, neste caso, é
patológica. Dúvida e ação, neste sentido, compõem uma dialética estruturante e
permanente, já que os pensamentos duvidosos imporão a consequente necessidade
de verificação e comprovação. Assim, as ações se tornam fragmentadas e
compulsivas, dando-se em repetições, que visam recapitular o que, possivelmente,
não tenha saído a contento ou da forma perfeita, exata, tal que evite o mal.
Segundo Gebsattel (1977) tal transtorno é
caracterizado pela acentuada necessidade de segurança; pelo sentimento de
fracasso; pela impossibilidade que o sujeito apresenta de confiar em si mesmo e
pelo tempo sem devir, já que a tentativa é a de eternização do presente. A
tentativa de eternização do tempo estaria diretamente relacionada ao caráter de
controle do anancástico, residindo-se aí um malogro,
já que o sujeito se quer eterno, embora se perceba finito e fracassado em sua
tentativa.
Romero (2001) ressalta que o modo de ser anancástico
revela a extrema vigilância, uma guarda preocupada “com as portas de entrada e
de saída”. Acrescenta que pessoas que vivenciam tal modo exageram as preocupações
e os sistemas de controle, desenvolvendo, minuciosamente, a atitude observante;
culpabilizam-se, de forma extrema, pelas
transgressões e envasamento da autoimagem, temendo, de modo perturbado, o juízo
dos outros. A dúvida impera na vivência anancástica
porque a pessoa se encontra dilacerada pelos conflitos emocionais, não havendo
uma compreensão básica e segura sobre si, sobre os seus projetos e sentidos existenciais,
buscando, assim, por meio das atitudes compulsivas uma certeza, que lhes ampare
e lhes assegure. Tais perturbações estão inscritas como um dos modos das
neuroses.
Romero descreve que as neuroses são
[…] perturbações psicológicas, originadas na história
vital do sujeito em particular na infância e na adolescência – caracterizadas
pelo predomínio de sentimentos negativos, o que leva o indivíduo a um estado
relativamente persistente de ansiedade, depressão e sofrimento. Os sentimentos
negativos relacionam-se via de regra, à autoestima e à
autoconfiança, muito diminuídas nesse tipo de pessoa, estando presente também
um nítido ou difuso sentimento de malogro pessoal. Como síntese de tudo isso, a
pessoa tende a mover-se num círculo vicioso, isto é, por roteiros repetitivos,
desgastantes, improdutivos. (ROMERO, 2001, p.153).
A circularidade mencionada por Romero (2001), ou seja, os roteiros
repetitivos, desgastantes e improdutivos, próprios das neuroses, são observados
no modo obsessivo-compulsivo de Ísis, especialmente,
em relação ao cuidado com os outros e com as coisas.
Um dos elementos fundantes da vivência anancástica
de Ísis diz respeito à realidade social imposta,
ainda, quando na fase da infância para a adolescência, que se estende para a
juventude, de ter o dever e responsabilidade de “cuidar da melhor forma” dos
irmãos e dos afazeres domésticos, mesmo sem maturidade para tal, como ela mesma
contesta, para que a mãe trabalhasse e conseguisse o sustento da casa, dado o
abandono do lar pelo pai. Nota-se, aí, que o fator pro-social
de seu vetor caraterial vai se desenvolvendo, em sua linha histórico-temporal,
num sentido da preocupação, responsabilidade e solicitude com os outros.
Contudo, tais aspectos por se desenvolverem de modo extremado, sob a égide do
controle, vigilância e rigidez, torna-se sintomático, o que, consequentemente,
vai afetando as relações interpessoais. O seu modo de cuidar demarcado pela
perfeição, verdade intrínseca e vigilância não deixa de ter um viés arrogante.
No que tange ao fator pro-egóico, vai se constituindo
pela acentuação do predomínio do cuidado como verdade, que parece denotar um
modo defensivo em relação ao seu sentimento de desvalor
e de inferioridade pessoal, já que não se sente estimada pelos outros. Estes
dois fatores, segundo Romero (2004) constituem o vetor caraterial e superar
tanto um lado quanto outro do extremo, para um desenvolvimento adequado, é
tarefa complicada. Tanto um fator quanto outro podem se desenvolver
inadequadamente, em função do sentimento de frustração persistente e duradoura.
Apesar da frustração sentida por Ísis, devido
ao sentimento de não reconhecimento, estimação e confirmação do outro, em
relação aos seus afazeres, considera como seu valor supremo a sua habilidade de
“cuidar” e de manter o controle das situações, principalmente, problemáticas.
Ela diz, com ênfase: “os problemas dos outros me perseguem, mas eu sou boa em
resolvê-los, com agilidade”. Assim, Ísis permanece
“colada” ao papel do cuidado com o outro, que, em sua linha histórico-temporal,
se transforma em cuidado demasiado e controle desmedido, que mesmo mediante à própria exaustão não se libera do ofício. A não liberação
estaria atrelada à culpa ou débito vivido, em relação a si mesma e ao outro,
que se apresenta em desproporção com o que pretende, mas não pode fazer: “dizer
não aos outros”. As suas repetições quantitativas, como salienta Kierkegaard (2009), entorno do cuidado exacerbado
demonstram se realizar como uma tentativa de manter o seu valor ou verdade subjetiva,
no centro de sua experiência, como algo que lhe assegure, ou seja, que dê
sustentação ao seu Eu.
Kierkegaard (2010) defendia que
ao sujeito é necessária uma ideia que lhe valha a pena viver ou morrer por ela.
E, o desespero humano incorre na discordância interna de uma síntese que diga
respeito a si mesmo, aos valores, que, de algum modo, na discordância é preciso
que sejam reconstituídos. A todos os sujeitos isto é muito caro, pois é por
meio da dimensão existencial valorativa, ou seja, aquela que, segundo Romero
(1998), permite aos sujeitos, como criador humano que é,
hierarquizar e avaliar seu campo vital e imprimir sua estimativa sobre as
possibilidades de certas realidades e escolhas, que se fundam, por um lado, na
autonomia e, por outro, na imposição dos ditames sociais. Assim, os valores
estabelecem o sentido e o grau de transcendência que os objetos, seres e
comportamentos têm para cada um, sendo a hierarquia axiológica dependente deste
grau e da exigência pessoal. É notório que as valorações sempre estão, também,
sob a influência de fatores afetivo-emocionais e que dependendo do modo de ser
de cada um é possível que os valores possam tanto favorecer o crescimento
pessoal quanto possibilitar equívocos e aprisionamentos, a exemplo, a
supervalorização idolatrada; laços de dependência e de subordinação; o
acatamento acrítico; julgamentos taxativos e precipitados.
Há casos em que a defesa de um valor seja tão fechada e alienada, dado o
seu contexto histórico-temporal, que se torna demasiadamente perturbável. É
sabido que todas as pessoas possam experimentar situações afetivo-emocionais
perturbadoras, em certos níveis, em função dos embates valorativos intra e interpessoais, carregados de angústia e culpa, bem
como apresentar posições e juízos rígidos ou traços carateriais de controle e
organização, por exemplo, todavia não caracterizando por si só a vivência anancástica.
Romero (2001) alerta sobre a importância de tal diferenciação para não
incorremos a diagnósticos precipitados e inadequados e/ou rotulações. Este
movimento repetitivo (circular), próprio da neurose, como considera o autor,
comporta uma peculiar forma de alienação e inautenticidade como, por exemplo,
autocontrole exaustivo, atitudes corretas extremadas, cuidado e descuidado desmedidos, dentre outros eixos significativos.
Kierkegaard (2009) descreve que
a repetição (qualitativa) não se constitui num tornar-se, mas sim numa retomada
de si mesmo, numa recuperação de si mesmo, no sentido de se escolher a
determinação existencial válida, que permita ao sujeito tornar-se “um homem de
novo” e, por assim dizer, com perspectivas de um futuro reelaborado. Por esta
perspectiva, Gebsattel (1977) sublinha que a vida do homem são é inconcebível sem repetição, contudo,
não se pode comparar com a compulsão repetitiva do anancástico. Para o homem são a repetição sempre dá
orientação para o futuro, que marca o rumo da personalidade saudável, em cada
uma de suas ações. Não sendo isto condizente no caso das neuroses.
No caso de Ísis a repetição (quantitativa) entorno do cuidado excessivo e rígido com o outro, que
culmina em sua exaustão ou num abandono de si mesma revela uma circularidade
improdutiva de suas possibilidades. Na repetição desenfreada, ela anseia, desesperadamente,
por um resgate de algo, que na realidade ela mesma atesta que nunca fora
conquistado, ou seja, o cuidado, o amor e a confirmação do outro para consigo. Ela anseia “cuidar bem” de todos e de tudo,
com perfeição e sem ajuda de terceiros, para se sentir reconhecida e confirmada
pelo outro, enfim, para se sentir potente e situada no mundo. Daí, que faça
isto excedendo às próprias condições.
É demonstrado por Ísis
uma debilidade acerca da coragem para se posicionar como alguém que possa
cuidar dos outros e das coisas, a partir de suas possibilidades. Ela exige de
si aquilo que está sempre além da margem, o que parece se assemelhar ao modo
que lhe foi exigido, pelos outros, quando criança e adolescente. Estaria aí o
circuito fechado de sua existência?
O senso de responsabilização extremada de Ísis,
mediante o cuidado com o outro, desenvolvido como valor supremo, incorre
diretamente sobre o sentimento de culpa em relação “ao dever”, um dever que não
comporta o sentimento de débito, em relação às suas tarefas. Desse modo, há uma
diminuição da sua vitalidade. Tillich (1979, p.61,)
enfatiza que, “os neuróticos são carentes de vitalidade,
posto que “perderam o poder de autoafirmação plena da coragem de ser”.
Na concepção de Heidegger (1997, apud ROMERO, 2001), uma das
formas de cuidado se dá pela preocupação substitutiva, a qual o cuidado é
retirado de um e assumido por outro em suas ocupações. Mesmo ao deixar-se ser
retirado de sua posição em sua ocupação, esse é um modo de cuidado e isto
significa dizer que o descuido é também cuidado. Em consonância, Romero (2001)
define que o eixo fundamental do mundo dos obsessivos seja o cuidado. No
entanto, ao cuidar demais do que se julga em determinadas ocasiões como
essencial, pode vir a se tornar descuidado.
Saber cuidar adequadamente de si é uma arte que nem sempre aprendemos:
ou aprendemos muito mal. Quando nos descuidamos além de certos limites, começa
a degradação, a queda inevitável na decomposição. Podemos chegar ao estado de
abandono, tornando-nos, desse modo, na casa vazia do ser. É o que acontece no
estado de depressão profunda. Então, a existência aniquila-se embora ainda, por
momentos, possa palpitar o levíssimo hálito da consciência (ROMERO, 2001,
p.216).
Ao manter-se em vigilância absoluta, às voltas do cuidado de tudo e dos
outros, mesmo que mediante à exaustão, Ísis vivência o próprio abandono de si, o que se revela,
apesar do modo adoecido, um cuidado com o eixo organizador do seu Eu. Neste
repetido modo de agir, originado de sua insegurança primária – aquela que emana
da infância e adolescência - é instaurado o sentimento de instabilidade,
partícula ontológica daquela. Nos contornos da instabilidade, sendo confrontada
em situações críticas e incertas, ela é acometida pela ansiedade, recaindo na
circularidade da neurose obsessivo-compulsiva: obsessão-angústia(patológica)-compulsão.
Como aborda Romero (2001, p.151) no neurótico, “qualquer situação que escape
do ritmo normal lhe provoca sentimento de culpa, uma vez que, a consciência de
culpa sobrevenha da consciência de ter transgredido um princípio ético”. Deste
modo, o sentimento de culpa está atrelado ao débito para com o próximo ou para
consigo mesmo. Outrossim, dever e culpa mantém uma
estreita relação quando a pessoa é religiosa “uma falta perante o juízo de Deus
e falta ao dever é sentida como algo digno de castigo e expiação” (ROMERO,
2001, p.144).
No que diz respeito à culpa, enunciada por Romero, Ísis
revela, em seu discurso, o paradoxo entre a exaustão que sente acerca do
cuidado com o outro e “a necessidade de cumprir sua missão”, que segundo ela,
seja uma atribuição divina: “Deus me favoreceu na habilidade de cuidar dos
outros, desde criança, e eu não posso negar isso, devo cuidar e cuidar bem, com
perfeição. Cuidei dos meus irmãos, dos meus sobrinhos, da minha filha e, agora,
de meu marido, da minha mãe e do meu padrasto, além de outros da família e
vizinhos, que sempre precisam e recorrem a mim”.
Outro aspecto importante que denota culpa, num sentido circular, é a
dificuldade demonstrada por Ísis de expressar emoções
e sentimentos, relativos à perda da filha, posto que compreende
que “se Deus quis levá-la, deve se conformar, sendo pecado sentir raiva e
tristeza”. Não obstante Ísis esteja negando a vivência
do luto há sete anos, afirmando que não possui tempo para tal, dado o cuidado
com os outros, como tarefa. Em seu discurso aparece a repetição: “Não tive
tempo, até hoje, de viver o luto da minha filha, porque todo dia tem alguém
para eu cuidar ou algum problema familiar, para eu resolver. Não tenho tempo
para mim, então vou adiando”.
Ísis demonstra elaborações lentas de
seu enlutamento, persistindo no seu discurso apenas o
zelo materno que desempenhou nos cuidados com sua filha, não se permitindo
encontrar lacunas em tal tarefa. Ao buscar elaborar com ela o que a leva pensar
que “salvaria” sua filha da morte, ela persiste: “só eu sabia cuidar dela,
sabia o que ela precisava, nunca deixei faltar nada para ela, somente eu a
conhecia por dentro e por fora”. Assim, Ísis vivencia
paradoxalmente a ilusão de que tudo pode pelo seu poder de cuidado vigilante e
o sentimento de fracasso de nada ter podido fazer, para manter a filha viva,
não se perdoando por sua ausência, no momento de sua morte. Parece-nos que ao
aceitar que nada poderia fazer revelaria a ela, a possibilidade de sua
insignificância e possibilidade de poder “não-ser” o
que deseja ser. Ísis,
neste sentido, parece se sentir como uma “Deusa” fracassada em seu poder de
cuidado vigilante. Não se perdoa, o luto perdura e como punição vivencia a
queda, o abandono de si mesma, numa vivência nostálgica do quanto foi feliz e
cuidadosa como mãe.
O termo luto, do Latim luctus, tem como definições dor,
mágoa e lástima, caracterizando, em sua terminologia sentimentos inerentes ao existir humano. O processo de luto, como
salienta Kubler-Ross (1985) não é considerado um
aspecto psicopatológico, mas uma experiência que envolve uma perda
afetivo-relacional significativa. Essa experiência, em muitos casos, de acordo
com grau de afinidade com o falecido, pode ser geradora de ressonâncias
subjetivas mais ou menos intensas, as quais são vividas de modos variados e
tempos muito particulares, dados aspectos biopsicossociais, culturais,
políticos, econômicos etc. O tempo de luto é
variável; em alguns casos pode durar anos ou, ainda,
nunca terminar; bem como algumas pessoas podem vivenciar tristeza profunda
prolongada, desespero incontornável e desânimo generalizado, embora este modo
ocorra com menor frequência.
Para Parkes
(1998), o enfrentamento do luto promove grande estresse, podendo ser denominado
como "crise", sendo a característica mais marcadamente acentuada os
episódios agudos de dor física, acompanhada de muita ansiedade e sofrimento
psíquico, principalmente, em momentos que o enlutado sente muita saudade do
morto, chorando e chamando pela pessoa. Os episódios podem dar início horas ou
dias após a perda, sendo o intervalo de tempo para a ocorrência e cessação
variável, de acordo com cada enlutado.
Como atesta Romero (2007) separações e perdas são experiências
inevitáveis na vida humana, desde o nascimento, e aprender a lidar com elas se
constitui numa tarefa indispensável ao crescimento, sendo esta por demais dolorosa e exige tempo, para maturação e elaboração.
Não por acaso algumas pessoas não consigam se reconstituir de certas perdas e
de alguns lutos, perdendo-se, também, de si mesmas. Ao se perder um ente querido e dependendo do
laço afetivo estabelecido é comum que se vivencie a experiência do luto
perdendo-se, de imediato, a orientação e sentido da existência; a motivação; o
desejo e a vontade de prosseguir, especialmente, se o ente constituía uma força
motriz. E, isso é proveniente da ruptura do “nós”, da
interrupção de uma história comum, da qual o outro desaparece. O âmago do eu é
invadido por uma desvitalização própria da
experiência, esvaziando-se de si mesmo.
O sentimento da falta do outro comprime todo o ser do sujeito que
reclama e protesta o infortúnio vivido, nos seus mais diversos modos de expressão:
gritos, silêncio, choro, voz baixa etc. Esta vivência diz respeito ao
sentimento de tristeza, marcada pelo pesar do ocorrido; pela ausência do outro,
com possibilidade do toque; pela exclusão do bem, que se acreditava ser
próprio, e pela impotência, mediante ao desamparo original. Mediante a tais
sentimentos é comum que se possa experimentar o desânimo, ou seja, a
desaceleração do ritmo vital, inaugurando uma certa
apatia, que contrapõe àquele apelo e convite próprios da vida.
O luto é uma vivência que se dá pela supressão do outro como
corporeidade, o que promove a ruptura dos sentidos habituais do “mundo-vida”
dos sujeitos. Resulta este aspecto do sentimento de esvaziamento da espacialidade
subjetiva, que é o sentimento de pertencimento que temos a respeito da nossa
confirmação e reconhecimento pelo outro, dada pelas vivências nos espaços
familiar, escolar, profissional, comunitário etc.
Como aborda Romero (2002), o espaço existencial constituído pelas
relações sociais, nos introduz a diversas qualificações desta dimensão:
simbólica, imaginária, real. Na experiência do luto esta configuração espacial
se desorganiza, posta a ausência do outro
Assim, poderíamos entender tal experiência espacial, talvez, como uma
experiência de “alma desabitada” (grifo nosso).
Como salientam os autores
A primeira condição para a experiência do luto é a
ruptura mesma vivida do ser-com, do partilhar uma espacialidade e temporalidade
específicas. A morte nos impele a vivenciar esta perda de modo irreversível,
produzindo abertura para a angústia e para a impotência diante do
desaparecimento do outro e da interrupção de nossa história em comum. Não é apenas
o outro que desaparece com sua história. É uma vida comum que se interrompe, morremos
“nós”, em largo sentido – eu e o outro. Com ele desaparecemos nós, nossa
história conjunta, um modo específico de se expressar naquela relação, uma
possibilidade de abertura de percepção de mundo, possibilidades de vivenciar um
papel social, uma emoção, uma tarefa cotidiana. Ele morre em sua corporeidade,
eu em minhas possibilidades de ser com ele, o “nós” enquanto temporalidade
compartilhada (FREITAS, MICHEL E ZOMKOWSKI, 2015, p. 17-18)
No luto, o outro, que fazia parte da dimensão interpessoal, ao
desaparecer irrompe uma história comum, constituída no tempo. O outro morre intercorporalmente e o enlutado morre nas possibilidades da
continuidade da relação, ou seja, de ser-com-o-outro. Restam imagens,
lembranças, sentimentos e emoções vividas.
Neste sentido o traço mais permanente no luto parece ser o da solidão, a
qual denota o sentimento de esvaziamento espacial intersubjetivo. Daí, que se
compreenda o luto como uma experiência muito dolorosa, posto que dentre outros
aspectos exige-se do enlutado um processo de “desligamento” afetivo e
corpóreo-espacial em relação ao ente querido; a aceitação da inevitabilidade da
morte; e, quando possível, a reconstituição de novos sentidos existenciais,
para o preenchimento daquele espaço subjetivo esvaziado. A experiência do luto
parece dever ser entendida tanto por seus aspectos intrapsíquicos quanto
sociais, sendo eles interconectados, já que o trabalho de luto implica em uma
transição de papéis, que impacta, diretamente, as dimensões afetiva, motivacional
e valorativa dos sujeitos. Haverá, a partir da perda do ente querido, a necessidade
da reconstituição dos papéis, por exemplo de não mais
ter ou ser uma mãe, um pai, um filho, um marido, uma esposa, um amigo, uma avó
etc.
Ísis já não é mais mãe, não é
cuidadora “especial”; no entanto, nega-se a não mais ser. Sua âncora fora
retirada e na tentativa de não perder o leme da nau de sua existência boicota o
seu tempo, a sua existência, na tentativa desesperada de se manter no prumo, na
rota de sua história. Não por acaso utiliza o seu tempo, demasiadamente, com o
cuidado dos outros e com o descuidado de si, sendo que no ápice do desgaste
sentido por ambos os modos solta o leme, se perdendo numa navegação obscura.
Ísis lamenta, frequentemente, o
esvaziamento sentido com a perda da filha, ainda que, de modo indireto;
traçando comparações ao fazer relatos de noticiários e ao contar histórias de
pessoas próximas, que segundo ela, não cuidaram ou descuidam de seus filhos e
que, mesmo assim, não os perderam. No entanto, ela que cuidava tão bem de sua
filha a perdeu. Ao enunciar o lamento e se dar conta dele, Ísis
busca, sempre, se retratar atestando a vontade divina e a sua necessidade de se
conformar. Diante da autocondenação, Ísis, de modo
desesperado, retoma a sua dita “missão” de cuidado de outros, já que o espaço
esvaziado, ou seja, o vácuo deixado pela filha urge de preenchimento, de algum
sentido para manter sua existência.
Segundo Tillich (1976, p.43) culpa e condenação são qualitativas, não quantitativamente
infinitas. Elas têm peso infinito e não podem ser removidas por um ato finito
de autonegação ôntica. Tillich
sublinha, ainda, que a angústia da vacuidade e insignificação
participam de ambos os elementos no desespero. Contudo, como aborda Kierkegaard (2010), “esta destruição de si próprio que é o
desespero é impotente e não consegue os seus fins”, ao contrário, afunda-se,
cada vez mais, numa autodestruição, posto que não liberta
nem aniquila o sujeito.
As perturbações psíquicas de Ísis, vivenciadas
após a morte da filha, aguçam, ainda mais, o seu modo anancástico
do cuidado com os outros, o seu sentimento de que tenha falhado no cuidado com
a filha, ou seja, de “não-ter-sido perfeita”; para
ela, é vista como uma falha grave, irreparável, que deve, agora, ser minimizada
ou sanada com o cuidado de terceiros, mesmo que diante da sua exaustão
físico-emocional, agravada pela depressão reativa.
Como Gebsattel (1977), ressalta o anancástico revela uma dificuldade tanto para empreender
algo novo quanto terminar aquilo que foi começado, e quando realizada a tarefa,
materialmente, sente-se como se não a tivesse realizado, posto que não há um alcance no plano histórico-vital desse sujeito. Isto
se dá em função da dúvida e da insegurança em relação à execução da tarefa,
havendo o questionamento se foi feita com exatidão ou não.
A morte da filha de Isis demonstra anunciar, para ela, além da perda intercórporea, a sua possibilidade de falha, de fracasso no
cuidado, ou seja, de possibilidade de não-ser aquilo
que deseja ser. Ao sentir-se despojada do seu poder de vigilância, de sua
guarda perfeita, além do sentimento de desvalor de si
pelos outros, retratados em seu continuum
temporal, entrega-se, agora, de modo reativo, à invasão do abismo obscuro da
vivência depressiva.
Preâmbulos da vivência depressiva de Ísis
Tellenbach (1969/1999) tece
importantes considerações para a compreensão da
vivência depressiva ou do “typus melancholicus”, como ele a caracteriza, salientando a
importância do caráter endógeno, a partir da noção de endon,
não se limitando aos campos somático e psíquico. Seria este, então, um
terceiro campo etiológico.
“[...] a psiquiatria distingue três
grupos de transtornos: somatógenos, psicógenos e endógenos. Evidentemente, esta distinção
repousa sobre uma delimitação de três campos causais. Os dois primeiros podem
ser chamados soma e psique. O terceiro, até agora não tem nome. Por razões
lógicas, deveríamos denominar endon o campo causal das alterações endógenas. 'Endógeno' quer
dizer 'nascido dentro' (ou seja, na casa). 'Endon' designa, por conseguinte, uma origem e, neste
sentido, também uma procedência” (TELLENBACH, 1969/1999, p.164).
O teórico ressalta que o endon
como instância espontânea e original, do ser do homem, se manifesta, fenomenalmente,
tanto em momentos de saúde quanto de adoecimento, sendo isto o que se possa
nomear de endógeno. O endon, nesta
concepção diz respeito à totalidade existencial como fenômeno e não como
causalidade, posto que ultrapassa tal aspecto. Assim,
tal campo se refere à globalidade do caráter vital no homem, apresentando-se,
sempre, como unidade. Esta peculiaridade denotada ao endon sugere
uma superação tanto da esfera biológica quanto do campo singular da existência.
O adoecimento psíquico, nesta perspectiva, nunca é apenas a expressão
objetivada de um fator biológico, tampouco independente ou mero reflexo da
existência individual.
Pode-se conceber, segundo Tellenbach
(1969/1999), que a vivência depressiva seja, antes de tudo, uma modificação da
estrutura total de relação do homem com o mundo, dada pela
condição existencial intolerável, sendo os processos endógenos movimentos advindos
de uma crise vital. Desse modo, é mister entender que
quando o teórico nomeia tal vivência como “typus
melancholicus”, tal noção advém de uma atitude e
construção fenomenológica, a partir da experiência clínica com os sujeitos.
Assim, ele retrata:
[...] o que pensamos quando falamos
de 'tipo' não é o resultado de medições, nem tampouco o de um esquema teórico -
por exemplo, caracterológico - mas unicamente da intuição imediata. Obtemos
traços essenciais do tipo melancólico não por meio da análise de propriedades e
de sua estruturação sistemática, mas pelas experiências no encontro com aqueles
que já foram melancólicos (TELLENBACH, 1969/1999, p.172).
Dessas experiências realizadas Tellenbach
extrai que os sujeitos que vivenciam a depressividade
tendem a colocar o sentido da sua própria existência na tarefa, ou seja, a
dimensão da práxis assume valor essencial. A autoexigência,
o esforço extenuante e a meticulosidade, em relação às atividades são aspectos
caros, não sendo incomum que o alto nível de exigência comprometa a realização
das tarefas e acentue o caráter obsessivo.
Tellenbach (1969/1999) considera, ainda, que a vivência do depressivo revela uma
extraordinária sensibilidade de consciência moral, de modo que, o sujeito
permanece atento a evitar toda culpa, por pequena que
seja; e que quando se vê carregado por alguma, esta é rapidamente anulada por
uma conduta expiatória.
Romero (2001) corrobora tal aspecto apontando que na vivência da culpa
depressiva, o sujeito atormenta-se por infrações cometidas e esta seria a culpa
existencial oriunda da responsabilidade, que o leva a tentar uma reparação, que
o libere do mal que por acaso causou.
A consciência tanto moral quanto religiosa rígida de Ísis,
desenvolvida em sua linha histórico-temporal, se mostra profundamente abalada
com a morte da filha. Entende-se que tal evento desencadeie a depressão reativa
ou situacional em Ísis, ou seja, “aquela associada e
disparada por eventos e episódios, que quebram os suportes existenciais da
pessoa” ((ROMERO, 2007, P. 86). Na história de Ísis,
por meio de seus relatos, é possível perceber momentos anteriores, vividos por
ela, que denotam depressão neurótica, ou seja, “associada a traços carateriais
presentes na história do sujeito; traços associados à personalidade obsessiva,
histérica, fóbica, fronteiriça” (ROMERO, 2007, P. 86). Esta vivência é expressada, especialmente, por sua luta obsessiva, desde a
mais tenra idade, pelo reconhecimento, amor e valoração por parte do outro. Em
seu prontuário constam registros relativos aos seus estados de ânimo
rebaixados, falta de motivação e sentido para existir, prostração, falta de
vitalidade, autoconfiança reduzida e isto se dando em vários momentos da vida,
que se atrelam, principalmente, à insatisfação com os relacionamentos interpessoais,
que, segundo ela, sempre se mostraram sem reciprocidade. Entretanto, Ísis nunca havia recorrido à ajuda psicológica e/ou
psiquiátrica, nestes períodos anteriores, dizendo sofrer sozinha. Quando Ísis inicia o processo psicoterapêutico aponta que este
espaço era o “único lugar” permitido para falar de si e para se cuidar, “dando
conta de si, dando conta de coisas que antes ela não conseguia enxergar”.
A morte da filha de Ísis se constitui num
acontecimento que instaura e concretiza um sentimento de impotência entorno de
sua totalidade, do atributo que estrutura todo o seu ser: a tarefa de “cuidar
bem” do outro. Observa-se que da mesma forma que a filha lhe consagrou a
possiblidade de ela “poder-ser” confirmada como
“cuidadora especial”, como nomeado por ela, também, furta-lhe este lugar, com
seu falecimento, sentindo-se, Ísis, sem lugar e
direção.
Tillich (1976) afirma que
destino e morte são os meios pelos quais nossa autoafirmação ôntica é ameaçada pelo não-ser. A
angústia mediante estes aspectos nos é básica, inescapável e demarca as
contingências do nosso ser espaço-temporal, que não podem ser deduzidas
logicamente, mas apenas existencialmente. O não-ser
sempre obtém suas qualidades em relação ao ser e uma das ameaças do não-ser ao
ser é aquela à autoafirmação do homem, que em termos relativos se dirige ao
sentimento de vacuidade e em termos absolutos ao sentimento de insignificância.
Tal ameaça sentida não diz respeito apenas à dúvida a despeito de um elemento,
mas à dúvida total.
Ísis, após a morte da filha, não
duvida apenas do seu poder de cuidados maternos, mas duvida de seu “poder-ser” como ser total. Desse modo, decai-se no abismo,
desvitalizada, desacreditada de si mesma e culpada, pois sente que perdeu o seu
“poder-ser” mais próprio: o poder de cuidar e
proteger o outro, de modo perfeito. Assim, ela se percebe não sendo aquilo que
idealizou ser; aliado a isso, não sente o reconhecimento e gratidão dos outros
pelos seus cuidados desprendidos, com tanto zelo e obstinação.
Romero (2001) aponta para alguns fatores dominantes da depressão: o
desânimo, a prostração, os sentimentos de autodesvalorização, a autoconfiança
reduzida, o tédio, a falta de perspectivas futuras, a culpa, sendo o seu
distintivo a desmotivação generalizada, a queda de vitalidade e a redução do
contato interpessoal. Fatores esses, que demarcam a entrega de Ísis para o estado do abandono de si e de queda, acompanhado,
geralmente, de autoacusações. Ísis queixa-se de não
reconhecimento dos familiares em relação aos seus cuidados e, também, de
descaso por parte deles em relação ao seu sofrimento pela perda da filha,
dizendo se sentir um “lixo”.
Romero (2001) considera a depressão como um modo de ser-no-mundo, isto
é, um estado de ânimo predominante que afeta todo o universo do sujeito. Todas
as esferas, da corporal até a dimensão espaço-temporal, estão caracterizadas na
linha do encolhimento, do abatimento e do desvalor
existencial.
Na dimensão espaço-temporal Ísis apresenta uma
perda referencial de como se colocar mediante a sua própria história, posto que
não se reconhece e não se sente reconhecida em seus
papéis; nega-se a vivenciar o luto, dizendo não ter tempo para tal, posto que
“os outros ocupam todo o seu tempo com solicitações, que ela não pode se
recusar, apesar de sua exaustão”. Ao ser interpelada sobre o significado do
cuidado psicoterapêutico que procurou, diz que “seria o único lugar que ela
poderia ser escutada e compreendida, que ali poderia dar um
lugar para si”. “Dar um lugar para si” passou a constituir, a partir de
então, na possibilidade de Ísis se situar em sua
linha espaço-temporal, de forma a se permitir e enfrentar, de algum modo, tanto
as forças anancásticas, que atropelam seus projetos,
quanto a obscuridade dada pela depressão. E, neste
sentido, tem investido, à medida de seu tempo, no cuidado de si, com relação as
suas demandas, desejos e interesses, de forma lenta, contudo gradual.
Na esfera motivacional Ísis possui dificuldade
de se permitir à entrega de outros motivos e sentidos para viver, a não ser
cuidar dos outros, principalmente dos adoentados; o que afeta a dimensão da
práxis, para outros projetos. Ressalta-se que na dimensão da práxis Ísis se recusa a voltar para a profissão de enfermagem, por
entender que os profissionais da área não teriam cuidado bem de sua filha,
acreditando num negligenciamento.
A esfera corporal é demarcada por dores por todo o corpo, que se mostra
sensível ao toque, sendo que analgésicos nunca as resolvem. As dores, na
totalidade do corpo anunciam, de modo concreto, o
próprio sofrimento de Ísis na totalidade da sua
existência. Como salienta Tatossian (2012) os estados
de impotência corporal são situações privilegiadas para a objetivação do corpo,
demonstrada pela significação instrumental enfraquecida. Assim, dor e
impotência são elementos imbricados entre ser e ter um corpo, expressando os
vividos como peso global.
Tatossian (2006) converge
sobre a concepção de Tellenbach, salientando a
intersecção do corpo vivido com os processos psíquicos, não sendo este corpo,
então, mero objeto da anatomia e da fisiologia, mas corpo dotado de
significado, com capacidade de expressar, pelo movimento, as ressonâncias tanto
positivas quanto negativas de suas relações com o mundo, constituídas
histórico-temporalmente.
[...] não é menos verdadeiro que a situação não é nem o psíquico
subjetivo, simplesmente 'acompanhado' de fenômenos somáticos, nem um conjunto
infinito de dados objetivamente presentes, pois ela é projetada pela característica
significativa disto que encontra (o sujeito) no mundo circundante e no mundo
humano. A situação é indissoluvelmente situação do corpo vivido ao mesmo tempo
histórico e mundano (TATOSSIAN, 2006, p.181).
A esfera afetiva, eixo central da existência, que, como destaca Romero
(2001), se articula com todas as outras esferas do existir humano, se mostra
afunilada pelos sentimentos de baixa de autoestima, de frustração e de
desvalorização, devido, segundo ela, à ingratidão por parte dos familiares, o
que afeta diretamente as esferas valorativa e interpessoal, sendo que esta
última tem sido cada vez mais restrita. Ísis
queixa-se de “um vazio no peito”, de “um sentimento de buraco” pela perda da
filha, um sentimento de “solidão terrível, como se o mundo tivesse esvaziado de
sentidos”, além do não reconhecimento dos familiares pela sua “entrega de toda
uma vida”.
Laing (1982, p. 79) considera que “o
vazio ocorre quando alguém se coloca em atos que lhe parecem ter algum
significado, mas que não recebe nenhum reconhecimento alheio e acha que ninguém
se importa com ele”.
Ísis, traz a falta de reconhecimento como uma repetição importante nas suas
relações, acreditando que se dedica, ao máximo, ao outro, mas que não seja
valorizada. Mostra-se indignada e profundamente triste, sem vontade
de pensar no futuro, mesmo que próximo, denotando perda da vitalidade e
liberdade de ser si mesma.
Tatossian discorre que tal
experiência vivida leva o sujeito a uma estagnação e à existência vazia.
[…] a existência no vazio comporta a alteração da
relação fundamental entre homem e mundo que permite o poder e o devir e funda,
a possibilidade de todos os atos particulares. Na falta desta relação, o solo
onde se desenvolvem todos os atos cognitivos, volitivos e afetivos se esconde.
(TATOSSIAN,1979/2006, p. 132).
Tatossian (2012) ressalta que
o deprimido se apresenta, particularmente, de modo inativo e impotente tanto em
relação às dores psíquicas quanto no movimento dos gestos, posto que comporta uma ressonância corporal, designada como depressão
vital ou, ainda, como dor moral. Acrescenta que o espaço do deprimido tende a
ser vivido de modo esvaziado, sem perspectivas, havendo, também, um comprometimento
na comunicação vital, uma vez que, se carece de energia para se colocar em
relação ao mundo. Assim, o sujeito sentindo-se separado do mundo, separado do
outro, está separado de si.
Foi desse modo que Ísis se apresentou à
psicoterapia, não fazia acompanhamento psiquiátrico, mas, com persistência
psicoterápica, conseguiu-se que aceitasse o encaminhamento. Entretanto, sem
adequado uso medicamentoso, aspecto este que, também,
mereceu orientação e acompanhamento.
Ísis demonstrava, na maioria das
vezes, um apagamento no olhar, lentidão nos gestos e na fala, não conseguia
perceber sentido para continuar a viver, após a morte da filha, a não ser
cuidar daqueles que, segundo ela, necessitavam dela, bem como dos afazeres
domésticos que eram suas obrigações. Em todas as sessões repetia sobre sua
missão e habilidade de cuidar do outro. Percebia-se que este aspecto, aliado à
sua crença religiosa, apesar de seu modo sintomático, naquele momento, se
constitua, para ela, num elemento importante de sustentação e continuidade de
sua vida, o que assegurava, de alguma forma, o distanciamento de uma possível
ideação suicida, que em nenhum momento foi revelado por ela.
Ísis oferece aos outros, como retrata
Tatossian (2012, p. 120) sobre as personalidades
obsessivas, “sua exatidão e sua aplicação escrupulosa nas tarefas familiares e
profissionais, com a sinceridade e a autenticidade profunda de sua dedicação
absoluta”. Em contraposição, seu esforço ao falhar, tanto em relação aos
cuidados com os familiares quanto com a filha, se revela,
para ela, drasticamente, fracassado, insuficiente. Neste sentido, como aborda Tatossian (2012, p.120) “é a necessidade da mudança que
constitui o fator depressógeno, por excelência”. E, também, como salienta Tellenbach
(1969/1999, P. 173) o “círculo de exaltação da autoexigência
no rendimento, por um lado, e da minuciosidade, por
outro, pode ser pernicioso e facilitar o desenvolvimento de uma depressão”.
(TELLENBACH, 1969/1999, p. 173).
Ísis apresenta como resposta à morte
da filha o esforço sobre-humano e obstinado de cuidado com o outro, no entanto,
ao não se sentir reconhecida e confirmada em seu valor abate-se, sente-se
exausta e ao se sentir desvitalizada, pela depressão, de modo salutar, busca a
psicoterapia.
Ísis dizia sentir seu mundo ruir, sem
a presença intercórporea da filha, a autoculpabilização referente à sua ausência no instante da
morte era a tônica de seu discurso, dizendo que ninguém compreendia o seu sofrimento.
Ela enfatizava: “só eu para saber o tamanho dessa dor, que nunca vai passar,
minha filha era a minha vida”.
Ísis abordava nas sessões sobre suas
indignações perante o mundo: a ingratidão das pessoas; a sobrecarga de afazeres
e sua exaustão; sobre doenças e mortes de pessoas conhecidas ou anunciadas em
jornais. A doença e a morte apareciam em seu discurso no modo mais próprio de
como ela se sentia, ou seja, em suas palavras, “morta por dentro”. No entanto,
numa luta pela vida, posto que percebia, a partir de
então, que precisava se cuidar, se fortalecer, para continuar sua existência. Apela, desse modo, para aquilo que é próprio do humano, ou
seja, o encontro genuíno com o outro, por meio da psicoterapia, para o resgate
de sua comunicação vital e de sua confiança basal, aspectos estes perdidos na
vivência depressiva, como salienta Tatossian (2012).
A carência ou ferida da confiança basal não aparece apenas mediante à depressão, ela a precede de muito tempo, constituindo-se
em elemento psicossomático central de tal adoecimento. O autor acrescenta que
mediante o sentimento de impotência radical o sujeito tende a esperar do outro
tal resgate, numa estratégia de substituição. No caso de Ísis,
dado o seu modo obsessivo que se justifica no “fazer para o outro”, cuidou-se,
no processo psicoterapêutico, que tal modo, mediante a vivência depressiva, não
fosse substituída, em seu cotidiano e na relação psicoterapêutica, pelo menos
em seu aspecto radical, pelo “ser para o outro”, incorrendo em um modo de
submissão.
As doenças de terceiros, as quais, segundo Ísis,
ela deveria acompanhar e cuidar, eram temas centrais de seus discursos, os
quais exaltavam sua agilidade e competências para solucionar problemas.
Entretanto, ela evitava discorrer mais aprofundadamente
sobre seus sentimentos, relativos à morte da filha, bem como sobre as diversas
experiências maternas vividas, que não retratassem suas virtudes, tentando,
muitas vezes, conter emoções. Neste sentido, possibilitava-se, por meio dos
conteúdos trazidos, a expressão de seus sentimentos e emoções, visando a elaboração desses aspectos, que, de algum modo, sempre
esbarravam em suas feridas. Seus discursos circulavam, geralmente, entorno do
quanto teria sido uma mãe, irmã, tia e filha cuidadosa. Ela abordava sobre a massividade de seus afazeres cotidianos, sem que houvesse
ajuda de terceiros, mas evitava, na maioria das vezes, dizer sobre os
sentimentos mais profundos, bem como expressar as emoções a
eles relacionados, que saltitavam em suas palavras. Contudo, com o
desenrolar do processo psicoterapêutico, Ísis mostrou
alguns avanços, especialmente, ao discorrer, mesmo que superficialmente, sobre
a culpa relativa à sua ausência no momento da morte da filha; alguns momentos
significativos que experimentaram juntas; sobre seu esforço e conquistas,
relativos às suas tentativas de doação de alguns objetos pessoais da filha, que
há muito estavam intactos, como uma boneca e a cadeira de rodas; sobre as
tentativas de “dizer não ao cuidado com os outros”, quando não estava ao seu
alcance; sobre à busca de realização de tarefas, à
medida de suas possibilidades e enfrentamento dos pensamentos obsessivos e
ações relativas aos mesmos; sobre a tentativa de autovalorização e de cuidado
pessoal; sobre as experiências de sofrimento vividas em sua linha temporal;
sobre a importância medicamentosa, durante o tratamento; sobre as possibilidades
de retomar a si mesma. Ela manifestou vontade de fazer faculdade de moda ou de
assistência social, contudo, ainda, alegando “não ter tempo”, em virtude de
suas tarefas destinadas ao cuidado com sua família. Demonstra, neste sentido, a
vivência paradoxal entre ancorar-se no cuidado do outro x ancorar-se em seu
cuidado, entretanto, reconhecendo, aos poucos, por si mesma, a importância de
fazer a mediação entre tais aspectos.
Assim, Ísis denota, mesmo que de modo, ainda,
inseguro a possibilidade de se permitir um movimento existencial diferente
daqueles dados pela repetição quantitativa, movimento este que ela não
suportaria lidar em tempos anteriores. Como exemplo do processo de alguma
ressignificação do sentimento de culpa devido a sua ausência no momento da
morte da filha relata: “cuidei da minha filha e me dediquei fazendo o possível
e o impossível por ela, e, minha presença não mudaria os fatos”. E, isto é
justificado por sua crença religiosa: “Deus me poupou naquele momento, porque
eu poderia ter impedido a passagem da minha filha, fazendo
ela sofrer e eu sofreria mais”.
Ísis tem dado saltos qualitativos em
sua trajetória, talvez, lentos e curtos, aos olhos de quem vê de fora.
Entretanto, considerando sua construção histórico-temporal
ela se mostra em pleno processo de abertura ao cuidado de si, talvez,
compreendendo que, como humana que seja, possua a face da imperfeição.
Neste sentido, considera-se o que Tatossian
(2012) retratara, Ísis
mediante a vivência depressiva buscou fazer um bom uso dela, ou seja,
despertou-se, criativamente, neste ínterim para uma abertura, mesmo que numa
pequena fresta inicial, para o cuidado de si, em detrimento da guarda
obsessivo-compulsiva do outro e do afundamento de si.
Conclusiones
Neste trabalho contemplou-se a relevância de não subalternar os fênomenos
da vida psíquica a um vínculo causal limitado, mas sim abranger a conexão de
sentidos históricos-temporais de uma vida, por meio da
análise antropológica e compreensiva-existencial. Como considera Dilthey para alcançar esta estrutura, ou seja, uma hermenêutica da vida, é
preciso dar conta dos nexos efetivos que provêm as vivências. O estudo da vida humana,
por este viés histórico-temporal, institui a questão da conexão como procedimento
metodológico, necessário ao processo da sistematização do que se pretende
conhecer. Assim, exige-se o envolvimento daquele que compreende e faz a sua
história em meio ao particular e ao coletivo. Acredita-se que a compreensão de
uma história de vida humana preceda a qualquer explicação, seja abstrata ou
objetiva.
Esta visada anuncia o desvencilhamento do enquadramento
dogmático, considerando que o compreendido não seja apenas a literalidade das
palavras e das experiências, mas antes os seus significados e sentidos
anunciados por quem vive a experiência. Tal esforço parece dar conta de evitar
aquilo que Schleiermacher teria determinado na
experiência da alteridade como “mal-entendidio”.
Na tessitura deste panorama existencial a análise compreensiva e antropológico-existencial
se colocou a favor de uma psicologia descritivo-analítica, com o intuito de
retratar a história de
Ísis na sua relação com o mundo, consigo e com os outros, pois,
apostou-se que a vida, neste sentido, se
faz presente em sua totalidade. Por isso, foi necessário percorrer a sua
biografia; suas relações interpessoais; seus modos de perceber e sentir o
mundo; seus valores, crenças, motivações e acompanhar o fluxo dos seus
horizontes e sentidos existenciais.
Nesta visada de hermenêutica da vida foi possível
trazer à luz a totalidade das vivências de Ísis,
possibilitando tecer interpretações fenomenológicas tanto a respeito de seus
modos de ser adoecidos ou sintomáticos quanto saudáveis. Ambos os modos
entendidos como aqueles possíveis de articulações
e pronunciamentos histórico-pessoais, diante dos acontecimentos fluídos da vida
humana, que envolvem tanto sofrimentos quanto contentamentos.
Nesta perspectiva, ao longo do processo psicoterapêutico, decorrido no
semestre 1/2019, as vivências de Ísis mostraram-se
ganhando contornos diferentes daqueles já vividos, demarcando-se a
possibilidade da repetição da vida, por meio daquilo que Kierkegaard
(2013) considerou como qualitativo ao invés de apenas quantitativo. Isto enseja
dizer, como retrata o teórico (p.53), que “o Eu, inicialmente, como síntese de
finito e infinito é dado, existe; em seguida, para se transformar, projeta-se
sobre a tela da imaginação e é assim que se lhe revela o infinito do possível”.
No infinito do possível as dimensões saúde e adoecimento são constitutivas do humano, sobressaindo uma ou outra mediante
os impactos sentidos pelos sujeitos, no acontecer da vida. No caso de Ísis ao vivenciar os modos anancástico
e depressivo revela as suas possibilidades de ser, mediante sua história, assim
como, também, coube, em determinado tempo histórico, a tentativa de retomada de
si, em meio ao próprio adoecer, ou seja, especialmente, quando vivencia a
depressão. Por meio da compreensão, foi possível perceber que ela apresentava
sentidos ocultos por trás das ações observáveis, algo interno que traduz pensamentos,
sentimentos e desejos. E, o caminho metodológico trilhado demarcou justamente a
possibilidade de conhecer não apenas o que Ísis fez
ou faz, mas os significados e sentidos de suas experiências, suas memórias,
sentimentos e julgamentos de valor que a conduziram a aos modos de ser tanto
adoecidos quanto saudáveis.
Ísis se mantem assídua à psicoterapia
na clínica-escola, ainda em 2021, com acompanhamento psiquiátrico, porém sem
medicações e lutando por “poder-ser” uma guardiã mais
saudável de si mesma e do outro e não o protótipo de uma “Deusa”.
Agradecimentos à Ísis que, pela coragem de
retomada de si, nos proporcionou este estudo.
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Curriculum
Beatriz
Grangê – Psicóloga clínica.
Wânier
Ribeiro – Psicóloga clínica, com ênfase em análise compreensiva e existencial;
especialista em psicologia clínica e saúde mental; doutora em educação, com
área de concentração em promoção de saúde; pedagoga; professora e supervisora
de estágios em Psicologia clínica, da Faculdade Arnaldo Jansen/Belo
Horizonte-Minas Gerais; assessora de projetos educacionais e de saúde.
Correo de contacto:
Beatriz Grangê – beatrizgrangepsicologa@gmail.com
Wânier Ribeiro – wanierribeiro@gmail.com
Fecha de entrega: 10/10/2021
Fecha de aceptación: 24/01/20226/2021
[1] Ísis,
nome fictício visando preservar o sigilo da identidade. O nome foi escolhido em
alusão à Deusa egípcia Ísis que era consagrada pelos
seus poderes de cuidado e proteção, além de ser venerada como uma representação
da essência materna.